quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Neurastenia - FLORBELA ESPANCA

Sinto hoje a alma cheia de tristeza!
Um sino dobra em mim Ave-Marias!
Lá fora, a chuva, brancas mãos esguias,
Faz na vidraça rendas de Veneza...

O vento desgrenhado chora e reza
Por alma dos que estão nas agonias!
E flocos de neve, aves brancas, frias,
Batem as asas pela Natureza...

Chuva... tenho tristeza! Mas porquê?!
Vento... tenho saudades! Mas de quê?1
Ó neve que destino triste o nosso!

Ó chuva! Ó vento! Ó neve! Que tortura!
Gritem ao mundo inteiro esta amargura,
Digam isto que sinto que eu não posso!!...

EM - SONETOS - FLORBELA ESPANCA - BERTRAND

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Costumes - RUY CINATTI

Pus nos teus olhos excelsos o ciúme
que lateja, às vezes, ó Lésbia, nos teus olhos.
O teu jovem amante não ignora
o que se passa entre ti e mim.
Nada lhe digas, dá-lhe cicuta
embebida em pétalas de jasmim.
O teu jovem amante mora ao lado
e tenho a chave da porta da casa em que ele mora,
a minha, por acaso, aluguei-lhe um quarto.
Quando ele chegar, bebida a cicuta,
beijá-lo-ei na boca, pensarei em ti
e no que se passa entre ti e mim
(e entre ele e ti, esticada a bota...)

EM - 56 POEMAS - RUY CINATTI - RELÓGIO D'ÁGUA

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

3 - JAIME ROCHA

Um cântico surge então do crepúsculo.
Um livro cai no meio de um jardim e a ameaça
começa de novo, dentro do espaço doente
do olhar. Há uma planta que sai da terra e nos
enlaça. A sua marca é a de uma vertigem,
como se as veias abrissem os caminhos
que delimitam os ângulos da cidade-

EM - DO EXTERMÍNIO - JAIME ROCHA - RELÓGIO D'ÁGUA

domingo, 28 de agosto de 2011

E parede - GASTÃO CRUZ

E parede
de treva e vento agreste
e arenoso assento e cinza
das nuvens e ao vento a pele extinta

Pele do corpo outrora quando na
sua areia de cinza a boca se perdia
muro de treva e ar e vento assento
de areia agreste e chuva e morte cinza

EM - OUTRO NOME/ESCASSEZ/AS AVES - GASTÃO CRUZ - ASSÍRIO & ALVIM

sábado, 27 de agosto de 2011

Avisos - JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

Explosões ouviam-se cada vez mais perto na baía
mas dizia-se são pescadores furtivos
amanhã veremos centenas de pequenos peixes
mortos na praia

um vento ríspido trazia do deserto
nuvens de areia
depositava às portas e nos telhados
uma muda ameaça

EM - BALDIOS - JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA - ASSÍRIO & ALVIM

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Blasé - JOSÉ ALBERTO OLIVEIRA

Faltavam poucas
páginas:

          o que seria
          a felicidade,

a terra semeada,

                    as giestas

em flor, um jantar
às terças-feiras.

EM - TENTATIVA E ERRO - JOSÉ ALBERTO OLIVEIRA - ASSÍRIO & ALVIM

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Vulcão - JOÃO RUI DE SOUSA

Agitado o vulto irrompe
em seu retrato e selim:
cavalga no que retome
o simulacro de mim
junto às pedras ardorosas
ao excesso que por aqui
é vesúvio que se entorne
em quentes magmas si-
métricas não só no nome
do que desce só por si
mas também por ser assombro
de um fogo centro do fim
porque nasce e é já o escombro
de espumas igneas aladas
de ardentes rosas-carmim
que serão petrificadas.

EM - LAVRA E POUSIO - JOÃO RUI DE SOUSA - DOM QUIXOTE

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Ensaio sobre o amor - DOMINGOS DA MOTA

O amor dura sempre enquanto arde
e mesmo quando as cinzas já estão frias
o amor nem é cedo nem é tarde
o amor nunca tem as mãos vazias

o amor qual relâmpago à solta
atravessa a galope o coração
(e deixa tantas vezes a revolta
na boca repentina do vulcão)

o amor pode ser o desengano
ou o delta dum rio até ao mar
o amor que se veste sem um pano
e apetece despir e mergulhar:

o amor permanece enquanto houver
sede e fome entre o homem e a mulher

EM - BOLSA DE VALORES E OUTROS POEMAS - DOMINGOS DA MOTA - TEMAS ORIGINAIS

terça-feira, 23 de agosto de 2011

És a sede - EDGARDO XAVIER

Basta crer que és o mar
para me sentir barco ou falua
para ser peixe ou morrer
na rua
em excesso de azul

És a sede
que arde nos meus olhos
e não te sabia

EM - CORPO DE ABRIGO - EDGARDO XAVIER - TEMAS ORIGINAIS

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Batem à porta - NATÉRCIA FREIRE

Batem à porta de noite.
Vou abrir. Ninguém entrou.

Entra uma nuvem de gritos,
Um relâmpago de pranto.

Sobem a escada. E entretanto
Dizem que são quem eu sou.

EM - ANTOLOGIA POÉTICA - NATÉRCIA FREIRE - ASSÍRIO & ALVIM

domingo, 21 de agosto de 2011

Dizeres íntimos - FLORBELA ESPANCA

É tão triste morrer na minha idade!
E vou ver os meus olhos, penitentes
Vestidinhos de roxo, como crentes
Do soturno convento da Saudade!

E logo vou olhar (com que ansiedade!...)
As minhas mãos esguias, languescentes,
De brancos dedos, uns bebés doentes
Que hão-de morrer em plena mocidade!

E ser-se novo é ter-se o Paraíso,
É ter-se a estrada larga, ao sol, florida,
Aonde tudo é luz e graça e riso!

E os meus vinte e três anos... (Sou tão nova!)
Dizem baixinho a rir: «Que linda a vida!...»
Responde a minha Dor: «Que linda a cova!»

EM - SONETOS - FLORBELA ESPANCA - BERTRAND

sábado, 20 de agosto de 2011

Assim - RUY CINATTI

A vida é curta para que me ensodes
misérias várias pela goela abaixo.
Não me atuses, Lésbia, ilha lésbia,
que eu acabo por furar-te um tiro.
Vai para o diabo
que te carregue.
Acaba-me já com a catulorrice
e toma lá... é para ti... compra-me lenços
de assoar...

EM - 56 POEMAS - RUY CINATTI - RELÓGIO D'ÁGUA

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

2 - JAIME ROCHA

É de noite que ele dança, fulgurante
e ébrio, como uma espada de sangue
no deserto. A cidade esvazia-se nas casas,
inventa uma árvore morta, um sonho circular
que se escoa num novelo, entre os dedos.
E quando a noite finda e os homens ressuscitam,
ele transporta uma tábua dentro do peito
como um vírus roendo o seu próprio ninho.

EM - DO EXTERMÍNIO - JAIME ROCHA - RELÓGIO D'ÁGUA

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

O nocturno atalho - JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

O que de sublime e doloroso o tempo guarda
precisava disso de maneira que até é difícil
porque se sentia só nos campos
onde os outros triunfam
descia o sombrio, o nocturno atalho

assim chegava cedo de mais à beira não do fim
mas do informulável
para quem as nossas pequenas imposturas
são uma perda, um delito, uma culpa

EM - BALDIOS - JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA - ASSÍRIO & ALVIM

terça-feira, 16 de agosto de 2011

The thrill is gone - JOSÉ ALBERTO OLIVEIRA

Um frémito corre as paredes,
convoca sombras ao silêncio:
depois das conversas, do fogo lento
das lareiras, um murmúrio:

os remos na água, o vento
que conjura os barcos ao cais.

Trazem das viagens um regresso
oblíquo, menos que recordações
tristes da infância, recusas,

objecções, a única, verdadeira
tristeza dos pomares ao sol posto,
a pele fria das maçãs, coisas assim.

EM - TENTATIVA E ERRO - JOSÉ ALBERTO OLIVEIRA - ASSÍRIO & ALVIM

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Náutica - JOÃO RUI DE SOUSA

De escafandrar o renome
à bolina do solstício
de perder achar o nome
no mastreame do vício
que nos lodos se emaranha
(ou nos rochedos erguidos
acima da cabeleira
dos oceanos pacíficos)
é que descubro os caprichos
duma ilha muito estranha
onde aportar é enigma
onde ancorar é azenha
onde acordar é arriba
de subida tão tamanha
onde partir é o remo
com que navega uma aranha
onde beijar é um rubro
festim de lume e de lenha.

EM - LAVRA E POUSIO - JOÃO RUI DE SOUSA - DOM QUIXOTE

domingo, 14 de agosto de 2011

Telúrica vertigem - DOMINGOS DA MOTA

Mergulho, subo ao fundo da loucura,
delta negro de lábios abrasados,
onde perco os meus olhos alongados
sobre as ondas felinas de água pura:

desgrenhamos a pele e a espessura
das águas com os dedos demorados:
o frémito dos corpos adunados
transborda de alegria, transfigura:

ofegantes, à sombra das estrelas,
os poros inebriam, sentinelas
do sangue amotinado, no quentume:

telúrica vertigem desvairada:
expande-se, extasia e cresce e brada
à beira de um vulcão de lava e lume

EM - BOLSA DE VALORES E OUTROS POEMAS - DOMINGOS DA MOTA - TEMAS ORIGINAIS

sábado, 13 de agosto de 2011

Conta-me - EDGARDO XAVIER

Conta-me
Do teu vestido verde
Seda pura
Corte liso
Conta-me
Do que é preciso
Para que vistas luar
E sombra
Pele e luz.

EM - CORPO DE ABRIGO - EDGARDO XAVIER - TEMAS ORIGINAIS

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Logo que nasci - NATÉRCIA FREIRE

Logo que nasci
Foi-me dada ordem
De me procurar.
Logo assim e aqui
Não vou ter descanso
Em nenhum lugar.

EM - ANTOLOGIA POÉTICA - NATÉRCIA FREIRE - ASSÍRIO & ALVIM

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

A minha dor - FLORBELA ESPANCA

A minha Dor é um convento ideal
Cheio de claustros, sombras, arcarias,
Aonde a pedra em convulsões sombrias
Tem linhas dum requinte escultural.

Os sinos têm dobres de agonias
Ao gemer, comovidos, o seu mal...
E todos têm sons de funeral
Ao bater horas, no correr dos dias...

A minha Dor é um convento. Há lírios
Dum roxo macerado de martírios,
Tão belos como nunca os viu alguém!

Nesse triste convento aonde eu moro,
Noites e dias rezo e grito e choro,
E ninguém ouve... ninguém vê... ninguém...

EM - SONETOS - FLORBELA ESPANCA - BERTRAND

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

1 - JAIME ROCHA

A cidade encontra um pássaro dentro do
espelho. E nesta visão o homem descobre um nervo,
um sentido. Debaixo de uma fonte apodrece
a estátua. A sua alma debate-se contra os muros.
Desfaz-se numa linha obscura entre rosas.
Também outras flores que o mundo cria
ao amanhecer, escondidas, de costas para uma
grande tela de plástico. E nesse abismo, na cratera
luminosa nasce outra vez o crime desse pássaro.

EM - DO EXTERMÍNIO - JAIME ROCHA - RELÓGIO D'ÁGUA

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Afogado no fogo... - GASTÃO CRUZ

Afogado no fogo arrefecidas
do fogo fora procuravas dunas
das florestas da noite há muito no
clarão do tigre as praias

No tigre do inverno ó afogado
de mistura do fogo fora nas
dunas areia e cinza
ó afogado

EM - OUTRO NOME/ESCASSEZ/AS AVES - GASTÃO CRUZ - ASSÍRIO & ALVIM

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Coisas tão felizes - JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

Entre amigo e amigo
jamais se afastam
coisas tão felizes
os instantâneos silêncios de certas formas
os protestos inocentes à nossa passagem
a natureza fortuita, dizia eu
imortal, dizias tu
do vento?

EM - BALDIOS - JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA - ASSÍRIO & ALVIM

domingo, 7 de agosto de 2011

Shaman's blues - JOSÉ ALBERTO OLIVEIRA

Tâmaras secas, uma tarde
de infância (coisas recordadas
com o coração muito pequeno)

- desistimos rapidamente
de ter sentimentos,
são um estorvo e felizmente

esquecem depressa. Mesmo
alegrias fúteis - castanhas
assadas em noites de chuva,

os meus filhos que cabeceiam
de sono - já não amargam
na memória. Renunciei
à melancolia - suponho

que com algum embaraço
e pouca virtude.

EM - TENTATIVA E ERRO - JOSÉ ALBERTO OLIVEIRA - ASSÍRIO & ALVIM 

sábado, 6 de agosto de 2011

À deriva - JOÃO RUI DE SOUSA

Nesta rosa que adivinho
pelo rumor de quem passa
sem saber bem o caminho
sem saber quem o enlaça
com braços de murta e vinho
sem estremecer na vidraça
partida com este ancinho
de esfarelar a desgraça
encontro a foto dum astro
numa rota sem destino
a procurar o seu espaço.

EM - LAVRA E POUSIO - JOÃO RUI DE SOUSA - DOM QUIXOTE

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Só em sonho - LITA LISBOA

Como eu queria
Transformar esta Terra,
Que seria exemplar,
E só teria ao acordar
Paz,
Saúde,
Amor,
Alegria.
Ah! Como eu queria!
Pão,
Trabalho,
Calor de Verão,
E tudo o mais
Que a minha imaginação
Soubesse criar!
E todos teriam um verdadeiro lar...

Mas tudo não passa da minha fantasia!...
O presente é bem diferente!

Que ideias tem a minha mente!...

EM - FRAGMENTOS DE MIM - LITA LISBOA - TEMAS ORIGINAIS

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

A contra-pêlo - DOMINGOS DA MOTA

Oxalá fosse o lume que beijasse
os lábios sequiosos de frescura
e com todos os poros conjugasse
a febre galopante da ternura

Com o pão do desejo, propagasse
arrepios na espinha, pêlo a pêlo,
e ateado o incêndio, mergulhasse
no corpo que atravesso a contra-pêlo

Oxalá que apesar de tanto vício
que provoca e perturba o coração,
inscrevesse e deixasse algum resquício
no mais fundo de ti, e porque não,

fosse o rio veloz, fosse a corrente,
mas a subir da foz para a nascente

EM - BOLSA DE VALORES E OUTROS POEMAS - DOMINGOS DA MOTA - TEMAS ORIGINAIS

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Limite - EDGARDO XAVIER

Salga-me a boca
na maresia dos teus lábios
túmidos
e despe-me

O amor não se esgota
na lisura das sedes
e antes permanece vivo
no sangue

Doces são os teus dedos
quando me esventram
na pressa de beber-me

EM - CORPO DE ABRIGO - EDGARDO XAVIER - TEMAS ORIGINAIS

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Cidade de água - NATÉRCIA FREIRE

O sol e o mar recolhem-se na infância
De áridas terras e de casas frias.
São um ser que já foi, nessa distância,
De estar no Tempo em praias de outros dias.

Por dentro, é a penumbra do casulo,
Cerrado à luz na expectativa informe.
Se vou nascer - a vida não regulo;
Se vou morrer - a morte ainda não dorme.

Tinha histórias de espectros para contar,
Labirintos de seda para correr.
Tudo foi o inverno do luar,
Numa cidade de água a amanhecer...

EM - ANTOLOGIA POÉTICA - NATÉRCIA FREIRE - ASSÍRIO & ALVIM

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Torre de névoa - FLORBELA ESPANCA

Subi ao alto, à minha Torre esguia,
Feita de fumo, névoas e luar,
E pus-me, comovida, a conversar
Com os poetas mortos, todo o dia.

Contei-lhes os meus sonhos, a alegria
Dos versos que são meus, do meu sonhar,
E todos os poetas, a chorar,
Responderam-me então: «Que fantasia,

Criança doida e crente! Nós também
Tivemos ilusões, como ninguém,
E tudo nos fugiu, tudo morreu!...»

Calaram-se os poetas, tristemente...
E é desde então que eu choro amargamente
Na minha Torre esguia junto ao céu!...

EM - SONETOS - FLORBELA ESPANCA - BERTRAND