segunda-feira, 20 de maio de 2013

Lúcifer - MIGUEL TIAGO

quando as veias pulsam chamas
e fazemos de nós instrumentos do mundo
então as forças são divinas
que deus és tu e eu e o resto.

e somos também os demónios
que portam a luz
e o fogo purificador
dos silêncios e cumplicidades
dos nossos confessionários-

EM - LETRAS ÍGNEAS - MIGUEL TIAGO - LUA DE MARFIM

domingo, 19 de maio de 2013

Quem morre no que diz - JOSÉ JORGE LETRIA

Sou o que me persegue e me envenena,
pois tudo começa e acaba
no círculo avassalador em que me movo.
Avizinho-me com lentidão felina
dos lugares onde se morre e se renasce
e transformo-me em palco de lumes,
na ficção última que me é dado representar.
Andam vozes lá fora a incendiar
os terraços largos do Verão,
e eu fico entontecido pela fúria da água
pelo desvelo das mãos que me alisam
os cabelos e as roupas num afago materno.
Tudo é fictício menos esta complacência
que me faz suportar o medo
quando só a última coragem
pode ser esperada de quem morre no que diz.

EM - POESIA ESCOLHIDA - JOSÉ JORGE LETRIA - INC

sábado, 18 de maio de 2013

O poeta não se submete... - AMADEU BAPTISTA

O poeta não se submete, é uma raiz
a pressentir o coágulo a penetrar
no cérebro, sempre que a treva
alastra.

O poeta olha fixamente para trás
e para a frente, sobre as imagens
evolui para que a sua sede
se estenda como uma particularidade

grave, um ferro a atravessá-lo,
a beleza cerrada, um último
predomínio do que, humanamente,

é conciliável com o irreconciliável.
Porque o poeta ama e odeia, em simultâneo,
no poema.

EM - ATLAS DAS CIRCUNSTÂNCIAS - AMADEU BAPTISTA - LUA DE MARFIM

sexta-feira, 17 de maio de 2013

De tarde... - MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA

De tarde viera alguém com flores - lírios,
jacintos, narcisos, despedidas - e a porta ficara
aberta desde então. Agora as traças ciciavam

lá fora numa alegria turva em redor de uma
lâmpada; e, sobre o banco do alpendre, jazia um
livro aberto na mesma página fazia quase um dia.

Batia-me nos pulsos uma vida vencida; e, mesmo
que a terra apenas aguardasse o fulgor da manhã
para chamar pelo teu corpo, tive a certeza de que
era sobre o meu que a noite eternamente se abatia.

EM - POESIA REUNIDA - MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA - QUETZAL

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Leves melodias - MARIA TERESA DIAS FURTADO

para a Gisela
Um Verão suspenso de um cálido céu
retoma um fio de amizade uma lembrança
cintilante e imagens paralelas
navegam-nos nos olhos como barcos
as velas movem o desenho das quilhas
na água, o vento é criador e surpreende.
Entre o não e o sim soltam-se
melodias leves e inteiras
que tentam harmonizar-nos na pele do mundo:
Cantam as imagens nos nossos olhos
fitam o horizonte pleno de silêncio
sobem alto de onde tudo se vê pequeno
e o mais elevado próximo.
Dançam-nos os gestos e o verso
dança que entre melodias leves
e versos se descansa.
 
EM - O ARCO DO TEMPO - MARIA TERESA DIAS FURTADO - LUA DE MARFIM

quarta-feira, 15 de maio de 2013

As cartas - FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO

Esperas os sinais da minha existência.
Eu transcrevo-te mas não vivo no poema.
Morro na mancha do papel. Uma carta cai
no matagal como um pássaro. O não ser
caçadora dá-me um sentido conciso da
realidade. Nem os belíssimos perdigueiros
me sentirão passar aqui. Eles

não me vêem até ao âmago. Tudo
o que é exterior e visível como
o corpo atrai-os. Tenho um limite
onde estou e nada está. As cartas
caem diante da avidez de cães.
Vou existir onde jamais vivi.

EM - ÂMAGO - FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO - ASSÍRIO & ALVIM

terça-feira, 14 de maio de 2013

X - PAULO EDUARDO CAMPOS

nunca virei a ser um escritor maldito
muito menos um poeta consagrado
sinto-o.
seria incapaz de viver da escrita.
de viver com a incerteza da inspiração.
imagino-me a ver o tempo escorrer
pelas paredes amarelas do fumo dos cigarros.
o papel por escrever.
as folhas, no cesto dos papéis
alternadamente rasgados pela fúria e desespero.
os poetas de agora já não são mártires
nem vivem na miséria.

EM -  A CASA DOS ARCHOTES - PAULO EDUARDO CAMPOS - LUA DE MARFIM

segunda-feira, 13 de maio de 2013

SOMOS - MARIA JOSÉ LACERDA

Somos o talvez
Do quase nada de nós.
Somos momentos, repartidos
No tempo.

Subtraímos ausências...
Marcamos presenças...
Somos os espaços preenchidos
Nos intervalos da vida dos nadas.

Somos, fomos os seremos, por viver
Somos pedaços de vida, a correr
Somos viajantes da brisa
Somos vida acontecida
Somos do que não se vê...
De todo sem vez...
Somos o talvez...

EM - ESCRITUS E RABISCUS - MARIA JOSÉ LACERDA - UNIVERSUS

domingo, 12 de maio de 2013

Magnólia - LÍDIA BORGES

Recolho com o olhar,
derramado no chão,
um Outono cor-de-rosa
em manhã de Primavera.
E não sei
se é euforia ou tristeza
o que vejo da janela.

EM - NO ESPANTO DAS MÃOS - LÍDIA BORGES - LUA DE MARFIM

sábado, 11 de maio de 2013

Clamor - AL BERTO

tudo vem ao chamamento
noite após noite o que dissemos e
o que nunca diremos - a viagem
com uma giesta de algodão presa nos cabelos e
a sensação fresca de um sulco de aves na pele

tudo vem ao chamamento - os lobos
os anões as fadas as putas as bichas e
a redenção dos maus momentos - enquanto te barbeias

vês no espelho o homem
cula solidão atravessou quase cinco décadas e
está agora ali a olhar-te - queixando-se da tosse
da dor de dentes e do golpe que a lâmina fez
num deslize perto da asa do nariz

não sei quem é - sei porém que vai afogar-se
naquela superfície clara quando dela se afastar e
abrir a porta para sair de casa murmurando: tudo
vem ao chamamento
por dentro do clamor da noite

EM - HORTO DE INCÊNDIO - AL BERTO - ASSÍRIO & ALVIM

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Maledicência - VERA SOUSA SILVA

Para quê tanto azedume,
tanta inveja e ciúme,
sob a capa da verdade?

Quanto ódio e bisbilhotice,
um rol de diz que disse
cuspidos com tanta maldade.

Onde pensa que vai parar
fingindo tanta virtude
que já não engana ninguém?

Ao mesmo e santo lugar
que outros de melhor saúde
quando morrem vão também.

EM - BIPOLARIDADES - VERA SOUSA SILVA - LUA DE MARFIM

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Partiste - MARIA ANTONIETA OLIVEIRA

Teu olhar insípido
na claridade que parte
de ti
O sol esconde-se envergonhado
As estrelas tentam brilhar
ainda no dia em que partiste...
A noite não surge!
Surgiu para ti
e teus olhos insípidos
ficaram na claridade do dia.

EM - ENCONTRO-ME NAS PALAVRAS - MARIA ANTONIETA OLIVEIRA - TEMAS ORIGINAIS

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Templo extremo - CLÁUDIO CORDEIRO

A hora é um templo extremo.
A água impõe um nome
a cada dia importado pelo vento.

Não me revolto com a luz.
É preciso coragem para suportar
as lágrimas do coveiro.

O tempo perdido é um punhado
de terra salgada...
... por lágrimas que secaram
a luz do dia.

EM - UM TUDO NADA ÁGUA - CLÁUDIO CORDEIRO - LUA DE MARFIM

terça-feira, 7 de maio de 2013

Província - EUGÉNIO DE ANDRADE

Meu casto
e puro amor provinciano,
não percas tempo
acendendo velas
no teu oratório:
nenhum santo
nem eu
estamos na disposição
de fazer o milagre
do teu casamento.

EM - PRIMEIROS POEMAS... - EUGÉNIO DE ANDRADE - ASSÍRIO & ALVIM

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Encontro - SOFIA BARROS

Estarei à tua espera, não te atrases.
Vem ter comigo junto à clareira;
Ali, onde fizemos as pazes,
o rumor do rio mesmo à nossa beira.

Vem à hora que hoje combinámos.
Sabes, não consigo ficar mais sozinha
junto a esta lareira onde nos deitámos
após a dança inventada na cozinha.

Fica comigo nos poemas de amor,
na luta que termina sempre em empate;
Deixa-me mostrar-te que do teu calor
não há força alguma que me resgate.

EM - ANTES DE SERMOS DIA - SOFIA BARROS - LUA DE MARFIM

domingo, 5 de maio de 2013

58 - CASIMIRO DE BRITO

Atravesso a fronteira sob o céu
Complacente: as árvores as pedras o rio
Falam a mesma língua. Os homens
Desamados por governos intransigentes
Interpretam as sílabas da lei.
Atravesso complacente a fronteira.
No leito desta casa sem portas nem
Muros as águas correm mas ignoram
A dialéctica do caminho: bebem o chão
E basta. Senta-te na relva, diz o mestre -
Descansa um pouco; essa é a via mais breve.

EM - NA VIA DO MESTRE - CASIMIRO DE BRITO - TEMAS ORIGINAIS

sábado, 4 de maio de 2013

Preservar o esplendor - AGRIPINA COSTA MARQUES

Preservar o esplendor.
Furtá-lo à excessiva proximidade
que o desfoque
à erosão das estações
à exposição da permanência
desvelada
e seus hiatos: onde a negação

a que releva a face recusada
a que desvirtua a visão
que se quer perpetuada
intacta.

EM - MORADA RECÔNDITA - AGRIPINA COSTA MARQUES - LUA DE MARFIM

sexta-feira, 3 de maio de 2013

V - EGÉRIA

A minha dor, ela fala, sabes...
Está cheia de gritos e foi apunhalada vezes sem conta,
Meu olhar vive num espaço longínquo da noite.
Quero opor-me ao calor da vida
E tornar gélido o coração da Primavera.
Sou egoísta comigo mesma.
Cavo uma sepultura para o júbilo
Para que nunca o conheça,
Não quero marcar encontro com ele.
Sei que sou uma negação,
Um lamento de tudo,
Mas não espero nada, por isso, nunca suspiro,
Só me dissipo.
Acho que fiquei estéril.
Ajudas-me?
Acho que me perdi por aí, sem ti.

EM - A ESPIRAL DO AMOR - EGÉRIA - TEMAS ORIGINAIS

quinta-feira, 2 de maio de 2013

17 - JORGE VICENTE

lá longe, uma cidade de barro
é apenas uma outra cidade -
cidade sem portas e janelas,
postigos de madeira que desalmam
a carícia dos homens sem corpo.
 
nada vive nos homens que não
seja escrito pelo cordão matricial
da carne - a vida é apenas o
ajuntamento dos pássaros na cidade
brança, com homens de barro a dormir
e a jurar solenemente pelo deus das
flores.
 
o teu sorriso é todo o meu alentejo
e a tua voz de barro é apenas minha
- a saliva de pele a crescer no
trabalho ancestral do oleiro.
 
EM - HIEROFANIA DOS DEDOS - JORGE VICENTE - TEMAS ORIGINAIS

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Por vezes - NUNO GUIMARÃES

 
(1960 - 2013)

por vezes eu também choro
dá-me na alma a revolta
de não estar sempre a teu lado
por vezes eu também tremo
sinto frio, dor e medo
de me encontrar no abismo
e só ser este o meu fado

no auge do sofrimento
transformo isto num sonho!

viajo célere no tempo
exorcizo o teu passado
ludibrio o teu presente
como futuro antecipado...

VOLTAREMOS A ESTAR JUNTOS! ATÉ JÁ MEU QUERIDO POETA E AMIGO.


EM - RIO QUE CORRE INDIFERENTE - NUNO GUIMARÃES - TEMAS ORIGINAIS