domingo, 31 de março de 2013

Fiz da tua sombra - NANDA ROCHA

Fiz da tua sombra o meu pouso
Fiz dela também a minha casa
É nela que me encosto e repouso
E apago meu fogo em brasa
Fiz da tua sombra o meu abrigo
Fiz dela também a minha cama
É nela que me protejo do perigo
É nela que encontro quem me ama
Fiz da tua sombra também a minha
Fundiram-se as duas numa só
Tal como o grão e a farinha
Tal como o moinho e a mó
Nossa sombra é só uma
E é tudo o que sempre quis
Não anseio mais nenhuma
Na nossa sombra sou feliz

EM - NA LINHA DO HORIZONTE - NANDA ROCHA - ESFERA DO CAOS

sábado, 30 de março de 2013

Segredo - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

A poesia é incomunicável.
Fique torto no seu canto.
Não ame.

Ouço dizer que há tiroteio
ao alcance do nosso corpo.
É a revolução? O amor?
Não diga nada.

Tudo é possível, só eu impossível.
O mar transborda de peixes.
Há homens que andam no mar
como se andassem na rua.
Não conte.

Suponha que um anjo de fogo
varresse a face da terra
e os homens sacrificados
pedissem perdão.
Não peça.

EM - ANTOLOGIA POÉTICA - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - RELÓGIO D'ÁGUA

sexta-feira, 29 de março de 2013

Asas - CECÍLIA VILAS BOAS

Floresces nas minhas mãos, quando te escrevo
Propago no sopro dos ventos mornos
Cada pétala que voga, na encosta do sentir.

Colho, na linha oculta do horizonte
O rasgo do teu sorriso
Que flutua nas águas sedentas do rio
Onde pousam os nenúfares mais belos.

Escrevo-te, nas raízes ancoradas do meu amor
O meu sonho luz, debruado a nuvens
Onde as estrelas são corações em flor.

Levito, nas asas alvas do amanhecer
Lavro na montanha a tua boca
Beijo-te, no silêncio do meu querer.

EM - O ECO DO SILÊNCIO - CECÍLIA VILAS BOAS - ESFERA DO CAOS

quinta-feira, 28 de março de 2013

Arte de amar - MANUEL BANDEIRA

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus - ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.

Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

EM - ANTOLOGIA - MANUEL BANDEIRA - RELÓGIO D'ÁGUA

quarta-feira, 27 de março de 2013

Paisagem - RUY CINATTI

Um tranquilo lago entre pinheiros
e um jardim selvagem em primeiro plano
e ó cavalgadas pela noite fora...
ao longe aceso um cavalo branco!...
A minha vida dava por um momento
de trote ou passo ou galope lento
buscando uma estrela na alvorada.

EM - 56 POEMAS - RUY CINATTI - RELÓGIO D'ÁGUA

terça-feira, 26 de março de 2013

Sopros de vento - ANA COELHO

Perguntei por mim ao vento
e um sopro fugaz
sacudiu-me o peito,
escutei um anúncio
no silêncio da noite escura.

Na palma da mão
o suor esconde o brilho
e a dor sem medo,
na inversão dos poros
as nuvens transportam
suspiros
o sol bebe
todo o adormecimento...

A lua
essa expirou
nas horas que não passam.

As imagens gelam as húmidas faces!

E o vento não me responde!

EM - O TACTO DAS PALAVRAS - ANA COELHO - EDITA-ME

segunda-feira, 25 de março de 2013

Ilha - DAVID MOURÃO-FERREIRA

Deitada és uma ilha   E raramente
surgem ilhas no mar tão alongadas
com tão prometedoras enseadas
um só bosque no meio florescente

promontórios a pique   e de repente
na luz de duas gémeas madrugadas
o fulgor das colinas acordadas
o pasmo da planície adolescente

Deitada és uma ilha     Que percorro
descobrindo-lhe as zonas mais sombrias
Mas nem sabes se grito por socorro

ou se te mostro só que me inebrias
Amiga amor amante amada eu morro
da vida que me dás todos os dias

EM - MATURA IDADE - DAVID MOURÃO-FERREIRA - ARCÁDIA

domingo, 24 de março de 2013

Canção - CORSINO FORTES

Longe longa a tua viagem
Que a semente
Consome a sua herança
                    pelo céu-da-boca

Que a saliva
         é espessa
                    é nebulosa
Como rosa-dos-ventos tecida em tua roca
Que as vogais pesam
               no prato da balança
               como astros e tâmaras
E antes da noite
        o silêncio o cio
                nos nossos ouvidos
Falávamos
        Árvore e habitação
E lá estavas tu

        OVO
               que cresce
No tambor da ilha
                  como SOL
Mordendo o umbigo de Deus

EM - A CABEÇA CALVA DE DEUS - CORSINO FORTES - DOM QUIXOTE

sábado, 23 de março de 2013

Espiral do tempo - LUIS FERREIRA

Os meus dias correm,
Despojados de destroços
Que o tempo absorveu
Na sombra do espírito sereno.
Meu Deus... falecem as horas,
Como um bando de aves levadas pelo vento
Afugentando o presente
Para poder enfrentar novos combates.
Aceno para os dias que passam,
Na nostalgia
Murchando as recordações
Saudades muitas,
Neste caminho que percorri passo a passo.
Um dia
Chegará a minha hora
Onde também serei pó,
E outros... agora jovens
Dirão a mesma ladainha
Neste ciclo de vida.

EM - O CÉU TAMBÉM TEM DEGRAUS - LUIS FERREIRA - ESFERA DO CAOS

sexta-feira, 22 de março de 2013

Ao fim do dia - ANTÓNIO BOTTO

Nesta fonte que fala na surdina
De qualquer coisa que eu não sei ouvir
Matei agora mesmo a minha sede
E sentei-me ao pé dela a descansar.

Não havia no ar mais do que a luz
Finíssima da tarde num adeus...
Uma luz moribunda e solitária
A despedir-se frágil pelos céus.

E à medida que a luz se diluía
Nas sombras que nasciam lentamente
A fonte no silêncio mais se ouvia,
Mais límpida, mais pura e mais presente...

Anoiteceu. Ninguém. Só a voz dela,
Só essa voz... Ao longe, num desmaio
O timbre vivo e pálido de um grito...
Levantei-me. Deixei-a. Tristemente
Acendeu-se uma estrela no infinito.

EM - CANÇÕES E OUTROS POEMAS - ANTÓNIO BOTTO - QUASI

quinta-feira, 21 de março de 2013

A morte - VINICIUS DE MORAES

A morte vem de longe
Do fundo dos céus
Vem para os meus olhos
Virá para os teus
Desce das estrelas
Das brancas estrelas
As loucas Estrelas
Trânsfugas de Deus
Chega impressentida
Nunca inesperada
Ela que é na vida
A grande esperada!
A desesperada
Do amor fraticida
Dos homens, ai! dos homens
Que matam a morte
por medo da vida.

EM - ANTOLOGIA POÉTICA - VINICIUS DE MORAES - DOM QUIXOTE

quarta-feira, 20 de março de 2013

António Vieira - FERNANDO PESSOA

O céu strela o azul e tem grandeza.
Este, que teve a fama e a glória tem,
Imperador da língua portuguesa,
Foi-nos um céu também.

No imenso espaço seu de meditar,
Constelado de forma e de visão,
Surge, prenúncio claro do luar,
El-Rei D. Sebastião.

Mas não, não é luar: é luz do etéreo,
É um dia; e, no céu amplo de desejo,
A madrugada irreal do Quinto Império
Doira as margens do Tejo.

EM - MENSAGEM - FERNANDO PESSOA - ASSÍRIO & ALVIM

terça-feira, 19 de março de 2013

A manhã - JORGE GOMES MIRANDA

Na véspera de dizer o que fere,
reduz, interdita,
há uma manhã onde me sento,
rio, escrevo.
Tem a duração de uma infância
reconquistada,
e não vive sujeita a decretos-lei
ou ao pagamento de taxa
sobre os rendimentos fixos.

Há os que esperam
o percurso do lume
nos lábios
para cantar, a aclamação
dos corvos para compor.
Piores são aqueles que lançam cinzas
para mais tarde dizerem que
também eles atearam a fogueira.

Contempla, poeta, serenamente, os trópicos
e o círculo polar.

EM - ESTE MUNDO, SEM ABRIGO - JORGE GOMES MIRANDA - RELÓGIO D'ÁGUA

segunda-feira, 18 de março de 2013

A poesia clássica - NUNO JÚDICE

Esvazio uma colheita de estrelas na eira
do infinito, onde as velhas deusas do oriente
as limpam do seu fogo. No fim do trabalho,
ficam a secar, à espera que o moleiro
venha, com o seusaco de vento,
e as leve para o moinho. As mós do sonho
reduzem-nas a este farelo de luz que os poetas
põem no alguidar das palavras, para
que as musas preparem a massa
da inspiração. E enquanto espero que
o forno aqueça, olho para o céu
vazio de estrelas, onde um cometa,
com o rasto único da madrugada,
escreve o princípio do poema.

EM - A MATÉRIA DO POEMA - NUNO JÚDICE - DOM QUIXOTE

domingo, 17 de março de 2013

X - VIEIRA CALADO

Ah, mas nos perturba o silêncio que se ouve
no rosário dos sedimentos geológicos
onde se inscrevem séculos dum plano austero
na busca das formas acabadas de eterno e oculto fim
para o ofício da flor e da semente.

Não nos perturba o murmúrio repetido
do incansável riacho
onde os pássaros despertos bebem a frescura
a profusão das formas abstractas
da nossa sede sempre instante
a maquinação alucinada dos olhos pelas noites
ou o desassossego dos relâmpagos estridentes
que ferem os dias claros.

Mantemos ainda
a crença numa dália renascida
a deslumbrar.

EM - VIAGEM ATRAVÉS DA LUZ - VIEIRA CALADO - PAPIRO

sábado, 16 de março de 2013

Alien - JOSÉ ALBERTO OLIVEIRA

Passados os anos de boémia e impiedade,
tenho de admitir que me convinha
ter alma ou, pelo menos, uma apólice
contra terceiros: a teimosia do corpo
e a insensatez do mundo, entre outros.
Pois tenho de admitir: não é por mim
que anoitece nos trópicos, não é por mim
que a glaciação se anuncia distante, nem por
mim Sigourney Weaver enfrenta a alegoria
cósmica e pegajosa do mal. Se fosse,
eu não precisava de um seguro, bastar-me-ia
a memória feliz dos meus erros.

EM - NADA TÃO IMPORTANTE, QUE NÃO POSSA SER DITO - JOSÉ ALBERTO OLIVEIRA - ASSÍRIO & ALVIM

sexta-feira, 15 de março de 2013

Motivar porquê? - BELMIRO BARBOSA


Um bom pensamento me impulsiona,
Necessito tanto que tenho fome,
Sinto falta de um dono e de uma dona.
Quem se realiza pelo que come?

Mesmo um grande motivo para mim,
Não o é para outro ser que eu desenhei.
Somos mais responsáveis por um sim
Do que vários nãos, que estão na lei!

O que mais pretendo é fugir ao engano,
Mas isso lá vai acontecendo. Atento
À clareza dos factos, novo pano...

Quem não quereria um sinal do vento
Para se motivar sem qualquer dano?
Enquanto esse sinal não vem, eu invento...

EM - SÓ CEM SONETOS - BELMIRO BARBOSA - CHIADO EDITORA

quinta-feira, 14 de março de 2013

Projecto incompleto... - ANTÓNIO BOAVIDA PINHEIRO


Quisera em cada sonho ir mais além,
A cada objectivo que se atingia,
Que o tanto de "naive" foi, porém,
Mais que obstáculo, a fantasia.

A vida assim vivida por alguém,
Contínuo suceder de cada dia,
Composta de sucessos, mas também
De frustrações, ou mesmo de agonia...

O cômputo geral foi positivo,
No balanço final desse trajecto,
No contexto dos dias já vividos

Qu'o que falta viver já só será
A capa dum projecto incompleto...
Pois tempo para sonhar, não haverá.

EM - CEM POEMAS... DIVERSOS - ANTÓNIO BOAVIDA PINHEIRO - TEMAS ORIGINAIS

quarta-feira, 13 de março de 2013

Os meus nervos - DOMINGOS MONTEIRO


Os meus nervos são cordas que, tangendo,
Aos poucos eu tornei desafinadas...
Fios aonde as aves, assustadas
Dos presságios cruéis, ficam gemendo.

Qual a razão de ser? E eu penso vendo
O tombar de ilusões, às revoadas,
Que as almas que na vida vão morrendo
Talvez sejam na morte compensadas.

Porque é que eu sofro uma alegria e gozo
Na dor uma volúpia estranha e ardente,
Junto um beijo de amor a um ferro em brasa?

Não sei. Jamais sabe explicar a gente
Porque no olhar mortiço dum leproso
Há muita vez a ânsia de ser asa.

EM - POESIA - DOMINGOS MONTEIRO - INCM

terça-feira, 12 de março de 2013

Noitinha - FLORBELA ESPANCA


A noite sobre nós se debruçou...
Minha alma ajoelha, põe as mãos e ora!
O luar, pelas colinas, nesta hora,
É água dum gomil que se entornou...

Não sei quem tanta pérola espalhou!
Murmura alguém pelas quebradas fora...
Flores do campo, humildes, mesmo agora,
A noite os olhos brandos lhes fechou...

Fumo beijando o colmo dos casais...
Serenidade idílica das fontes...
E a voz dos rouxinóis nos salgueirais...

Tranquilidade... calma... anoitecer...
Num êxtase, eu escuto pelos montes
O coração das pedras a bater...

EM - SONETOS - FLORBELA ESPANCA - BERTRAND