terça-feira, 22 de setembro de 2020

Borbotão - MARIA AMÉLIA ELÓI

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E me pergunto por que eu escrevo
por que eu ainda escrevo
— apesar dos tudos todos
apesar de todos
apesar de mim —
por que mesmo assim
com falta de jeito
por que não paro de escrever.

Se ele não vai ler.

Se há tanta obra ótima de gente ótima
que vale resenha que vale entrar na lista
se me zango, dolorida, com crítica pesada cítrica
ácida cáustica.

Se sinto náusea só de pensar
que ele não vai mesmo ler
ele não vai se interessar.

Se o tempo não nos redime de nada nadinha
menos ainda da falta de tempo
se maracujaremos todos até a morte ou morreremos
antes, com pele ainda rija
se o meu bendito três-parágrafos
por mais queridinho e refinado que seja
pode cansar mendigando piedade anistia
que não vai impedir.

Mas por que mesmo?
Se meu verso não abala estrutura
se não trata preconceito
não abraça quem tem frio
se meu texto não vira emprego
não consola a mulher que apanha
nem livra a menina do pai que abusa
nada alivia
minha fala não tem serventia.
Pra quê, então?
Só como prova de que estou viva e me importo
com o que dói em mim e no outro?
Porque a vida é assim também
essa mistura de acaso com falta de propósito
essa doideira de causa
consequência loopings descalabros
desprogramados?
Porque a morte ninguém explica
só se vive (mais a dos outros que a nossa)
nenhuma palavra que se invente vai servir,
que eu continuo borbotando teimosia?

Escrever por quê? Para quê? Se há só razão pra se
livrar de desejo tão pentelho!

Mas por que não? Como não? Já que é esse mesmo
meu motor meu destrambelho
só desse jeito sei sentir e vivo?
Se ele não ler, eu nem ligo.

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (POESIA) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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