quinta-feira, 10 de maio de 2018

Bomba-relógio - ISABEL ANTUNES


LIVRO GENTILMENTE OFERECIDO POR ADRIANA MAYRINCK

Tenho mais que muitos Natais de idade.
Há centenas de homens por aí, como eu, assim,
povo esquecido do campo, do mar, da cidade,
caçados, mobilizados. Uns quantos fugiram.
Outros, apanhados, quase analfabetos, enfim,
gente jovem, imberbe, de alma limpa, ainda,
filhos que eram esperados cuidadores na velhice,
não por vontade sua fardados, foram precursores
em barcos embarcados para África, num adeus,
ignorantes do destino que ninguém lhes disse,
lágrimas de Mães acenando lenços brancos na doca,
o Niassa no Conde de Óbidos, a sair da Rocha.
Corriam, doíam tenebrosos anos sessenta, então.
Pesa-me o tempo, dói a alma, rebenta-me o coração.
Decepado o cordão, não vou chorar, sou homem.
Gritam-me que sou o orgulho da Nação,
os homens fortes nunca mostram que sofrem.

Lá fui pelo mar salgado que eu nunca vira.
O medo mascarado, o rosto espantado.
O sorriso de espantalho, o braço armado
Valentões, todos, nós? Eu, em pânico, destroçado.
Enfrentar os pretos inimigos escondidos?
Porquê? Para quê? De quem é aquela terra?
Noites tenebrosas, árvores assassinas,
Chão minado, água infecta, doença, mosquitos,
comida de lata, insalubre. A beleza do sol-pôr.
Ataques, emboscadas, granadas e tiros, o terror.
Companheiros sobem no ar, explodidos e sumidos.
Amigos desaparecidos para sempre perdidos.
Nada resta da vida, da paz, do meu emprego,
do sossego no Continente que ficara para trás.
A madrinha de guerra, um anjo fiel nas cartas,
é a jovem mulher bonita que me consola,
numa dádiva de palavras doces. Amor ou esmola?

Regressei. Casei. Mulher-paciência-de-Mãe,
era agora a minha. De guerra, a fiel madrinha.
Adoeci também. Do estômago? Barriga? Coração?
Eu não durmo. E se durmo sufocam-me pesadelos.
É o medo em reviravolta que volta e me revolta.
Relâmpagos do mato que me atacam e perseguem.
Um banal estampido na cidade é agora um tremor,
o meu corpo sofrido todo encharcado em suor.
Lá, era morrer ou matar, a terrível e fatal opção.
Aqui, me defendo e ataco, sem coração nem razão,
as pessoas que mais amo e me amam, na vida minha.
Perdi todo o desejo que pela mulher tinha. Lamento.
É Bomba-Relógio, a guerra no sangue, um tormento.
Regressei com olhos sãos, com braços e com pernas
mas trouxe comigo um monstro que me devora
a cabeça, cá por dentro. Nem me resta o pensamento.
Entenda-me, você. Você que lê isto, agora…

EM - VOZES IMPRESSAS - ANTOLOGIA - EDIÇÕES VIEIRA DA SILVA

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