sábado, 31 de julho de 2010

Canção do Salgueiro - FREDERICO LOURENÇO


Peço-te que sobre o meu leito deponhas
a veste branca com que serei enterrado.
Ouves um lamento? É o vento.

Seguimos agora em direcção a Faro;
entramos já de noite na Via do Infante.
Atravessámos o Alentejo debaixo de chuva,
como debaixo de chuva atravessáramos o Ribatejo.

Peço-te que sobre o meu leito deponhas
a veste branca com que serei enterrado.
Ouves um lamento? É o vento.

É um mundo fechado, este; um mundo
só teu e meu. Não nos olhámos nos olhos
durante a viagem, mas consigo
ver-te na paisagem nocturna à minha frente
como se olhasses para mim.

Peço-te que sobre o meu leito deponhas
a veste branca com que serei enterrado.
Ouves um lamento? É o vento.

in... Santo Asinha e outros poemas - FREDERICO LOURENÇO - Caminho

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sexta-feira, 30 de julho de 2010

Resumo - MANUEL FERNANDO GONÇALVES


Às vezes é absurda a distância, outras
é desejada e fria como um colar de contas,
raras contas, endurecidas, de restos
de letras, palavras não pronunciadas.

Às vezes é cruel mastigar o teu nome
curto, morder o beijo que sempre querias
dar-me, outras sabe a mel a memória densa,
o peso absorto da mão que se despede.

Resumo, bem sabes, o amor e a vida
mas soube de onde vinha quando te vi
de cabelo curto e cara desenhada: eu
no teu olhar é que morri, mesmo a sorrir.

in... A realidade dos factos - MANUEL FERNANDO GONÇALVES - & etc

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quinta-feira, 29 de julho de 2010

VII - Soneto - SÉRGIO FRANCLIM


Aborreço-me, perco-me sem alma;
Divago pelo abismo sem sossego.
Oh! Procuro ter sorte, sentir calma:
Não ter dados na cama do aconchego.

Tentações rodopiam. Outras vidas,
Presas nos pensamentos libertinos,
Como se fossem 'stradas percorridas,
Iludem-me com mansos desatinos.

Seguir belos fascínios, seguir?
Abandonar castelo? Cavaleiro
Sempre ser sem terror pelo porvir?...

Oh! Padeça essa musa. Seja morta
Na solidão de um pálido mosteiro...
E não bata juiz na minha porta.

in... Eterno viajante - SÉRGIO FRANCLIM - Ministério dos livros

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quarta-feira, 28 de julho de 2010

A um poeta - JOSÉ ANTÓNIO ALMEIDA


Trata bem o bebé da casa, mil
cuidados deves ter com essa válvula,

o louco mecanismo que respira
perigoso na cama do teu cérebro:

a síndroma da noite e da raposa
- o teu bebé, a imaginação.

in... Obsessão - JOSÉ ANTÓNIO ALMEIDA - &etc

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terça-feira, 27 de julho de 2010

No atalho das tuas mãos - JOÃO MANUEL RIBEIRO


Andei pela bainha dos dias
costurando paisagens
colhendo suspiros
sorrisos
palavras breves
frutos para trincar em horas azedas

corro hoje
despido pelos trilhos da tua pele
rindo muito
fazendo-te cócegas
soletrando afagos
e perdendo as mãos
no atalho das tuas mãos

in... Amo-te /poemas para gritar ao coração - JOÃO MANUEL RIBEIRO - Trinta por uma linha

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segunda-feira, 26 de julho de 2010

Morreste sem alarido* - GRAÇA PIRES


Morreste sem alarido.
De que morte?
me pergunto.
Descentrado no tempo,
rasgavas o silêncio
dos caminhos que te perseguiam.
A via-láctea, entretecendo
teu delírio, nunca me devolveu
a forma imprecisa do teu vulto.
Inclino o rosto
para a luz dispersa da lua
e vejo o teu nome
nas pupilas das aves nocturnas.
Deixo, então, que soltem tuas cinzas
na mancha desta página,
onde ainda ressoam os teus passos

in... Uma extensa mancha de sonhos - GRAÇA PIRES - Labirinto

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* Os poemas deste livro não são titulados. Usei o 1º verso como titulo por questões logísticas

domingo, 25 de julho de 2010

O palácio da ventura - ANTERO DE QUENTAL


Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!

Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura...
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura!

Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...
Abri-vos, portas d'ouro, ante meus ais!

Abrem-se as portas d'ouro, com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão - a nada mais!

in... Sonetos - ANTERO DE QUENTAL - Ulmeiro

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sábado, 24 de julho de 2010

Muito me tarda! - VITORINO NEMÉSIO


Tarda na Guarda amiga em flor:
Cinza de pedra não seria,
Mas era assim como uma dor
Que da viagem se fazia.
Como uma ovelha cujo velo
À força de anos e de ervinhas
Alvo se torna, de amarelo
Aos olhos de aves ribeirinhas,
Fronteira tive a tristeza
A tudo sonhado um dia:
A Guarda é forte, que a reveza
Com um quase nada de alegria.

Muito me tarda a morte! Houvera
De viver rei, anjo ou pastor...
Era outra a pele: mudava de era
E ovelha parda
Por amor.

Mas só na Guarda!
Tardar ao longe, só na Guarda,
A que me espera.

in... A poesia das Beiras - ANTOLOGIA - Caixotim

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sexta-feira, 23 de julho de 2010

Coração - VASCO GRAÇA MOURA


coração de mar e vento
que aos corações lanças redes
e és perpétuo movimento
na guitarra do paredes,

pões esperança e amargura,
vibras sombra e luz nas notas,
e em surdina tens gaivotas
de saudade e de aventura,

coração tumultuário,
ó faminto coração,
solidário e solitário,
a prender nuvens ao chão,

coração de melodia,
coração em que murmuram
sol e lua e se misturam
em funda melancolia,

de tantas fomes e sedes
coração terno e violento,
és perpétuo movimento
na guitarra do paredes

in... Poesia 2001/2005 - VASCO GRAÇA MOURA - Quetzal

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quinta-feira, 22 de julho de 2010

Justiça - ALEXANDER SEARCH*


Segundo eu suponho, houve um país
Onde todos tinham torto o nariz.

E o nariz torto de cada um
Não entristecia, de modo nenhum.

Mas nesse país um homem nasceu
Com nariz direito e assim cresceu;

Os homens por ódio, nesse país
Mataram o homem do belo nariz.

in... Poesia - ALEXANDER SEARCH - Assírio & Alvim

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* Alexander Search é um dos heterónimos de Fernando Pessoa

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Em todos os jardins - SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN


Em todos os jardins hei-de florir,
Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.

Um dia serei eu o mar e a areia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de abrir.

Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como num beijo.

Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.

in... Poesia - SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN - Caminho

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terça-feira, 20 de julho de 2010

Origem do Império Português e do provincianismo português - JORGE DE SENA


Com estas esposas, mães, primas, irmãs,
compreende-se.
Mal se viam chegando à puberdade,
estes homens tinham de fugir
e seriam sedentos de quanto outras
mulheres lhes dessem.

Os que ficavam, ou os que levavam consigo
as da família, que tinham,
eram forçados pela tradição biológica
a viver no esófago das fêmeas,
como o macho da bonelia viridis.

Que, em Portugal, até as putas são senhoras
que não fazem porcarias,
e ao sábado fodem e em decúbito dorsal.

in... Dedicácias - JORGE DE SENA - Guerra & Paz

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segunda-feira, 19 de julho de 2010

A canção - JORGE GOMES MIRANDA


Amontoam-se caixas de cd's vazias
a teu lado, furiosamente.
Há mais de uma hora que procuras
uma canção
que o vento jurou não levar consigo.

A memória de uma noite límpida
instinga-te a continuar essa busca,
até que fatigado percebes que os fragmentos
da canção que ouves, logo passando à próxima,
são a única música que esta tarde ouvirás.

A outra que porventura te faria feliz
talvez nunca mesmo tenha existido
ou apenas na tua memória
tecida uma noite em que alguém partiu
ou te sentias particularmente sozinho.

in... Este mundo, sem abrigo - JORGE GOMES MIRANDA - Relógio D'Água

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domingo, 18 de julho de 2010

Soneto - PEDRO TAMEN


Não digo do Natal - digo da nata
do tempo que se coalha com o frio
e nos fica branquissíma e exacta
nas mãos que não sabem de que cio

nasceu esta semente; mas que invade
esses tempos relíquidos e pardos
e faz assim que o coração se agrade
de terrenos de pedras e de cardos

por dezembros cobertos. Só então
é que descobre dias de brancura
esta nova pupila, outra visão,

e as cores da terra são feroz loucura
moídas numa só, e feitas de pão
com que a vida resiste, e anda, e dura.

in... Memória indescritível - PEDRO TAMEN - Gótica

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sábado, 17 de julho de 2010

Ofensa - MIGUEL BEIRÃO


Por vezes, sem querer,
A ofensa sai gratuitamente
E acaba por ofender,
Quem nunca ofendeu a gente!

Coisas que se dizem,
Involuntariamente,
Por vezes, atingem
Um peito inocente!

São explosões,
De momento inquieto,
Que atinge corações,
E desmancha afecto!

Sem poder controlar,
A espontaneidade da ofensa,
Por vezes o calar,
Faz toda a diferença!

in... Balada da Liberdade - MIGUEL BEIRÃO - Edição de autor

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sexta-feira, 16 de julho de 2010

Afectos de um coração contrito - MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE


Oh rei dos reis, oh árbitro do mundo,
Cuja mão sacrossanta os maus fulmina,
E a cuja voz terrífica, e divina
Lúcifer treme no seu caos profundo!

Lava-me as nódoas do pecado imundo,
Que as almas cega, as almas contamina:
O rosto para mim piedoso inclina,
Do eterno império teu, do céu rotundo:

Estende o braço, a lágrimas propício,
Solta-me os ferros, em que choro e gemo
Na extremidade já do precipício:

De mim próprio me livra, oh Deus supremo!
Porque o meu coração propenso ao vício
É, senhor, o contrário que mais temo.

in... Antologia poética - MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE - Verbo

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quinta-feira, 15 de julho de 2010

Tristão e Isolda - SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN


Sobre o mar de Setembro velado de bruma
O sol velado desce
Impregnando de oiro a espuma
Onde a mais vasta aventura floresce.

Tristão e Isolda que eu sempre vi passar
Num fundo de horizontes marítimos
Trespassados como o mar
Pela fatalidade fantástica dos ritmos
Caminham na agonia desta tarde
Onde uma ânsia irmã da sua arde.

Tristão e Isolda que como o Outono,
Rolando de abandono em abandono,
Traziam em si suspensa
Indizivelmente a presença
Extasiada da morte.

in... Mar - SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN - Caminho

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quarta-feira, 14 de julho de 2010

55 * - ÁLVARO ALVES DE FARIA


Não há poema sem risco,
esse corte que se afunda, como um barco,
esse corte
esse corte
que escapa da faca e seduz a pele
como se a abrir a fenda da própria vida.

No risco do poema joga-se a sorte,
também a memória,
também a alma,
também o tempo de viver,
também a existência,
também o próprio poema e seu destino.

O poema se risca e se desfaz no seu rascunho,
seu invólucro de seda, pano no azul em sua linha,
agulha que se costuram no exercício de fazer-se
a cada dia
e a cada dia
refazer o tempo tecido na teia de um aceno.

in... Este gosto de sal - ÁLVARO ALVES DE FARIA - Temas Originais

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* Os poemas deste livro não são titulados

terça-feira, 13 de julho de 2010

Santa Bárbara de Nexe - MIGUEL BEIRÃO

Livro gentilmente oferecido pelo autor com a seguinte dedicatória:
Para o amigo Emanuel
que a liberdade paute
a balada da tua vida
06/07/10

Onde o sol nasce e brilha,
Entre a serra e o mar,
Santa Bárbara é filha
Do vento e do luar!

Tens como estandarte,
o trabalho e a arte
Do teu povo, a te defender,
Povo guerreiro que labuta,
Que não vira a cara à luta,
Para te ver sempre a crescer!

Gente que não olha para trás,
Na batalha do seu dia-a-dia
E com empenho e vontade faz,
Crescer nobre a freguesia!

Tens pessoas que te dão cor
Musicos, poetas, "charoleiros",
Gente de coragem e valor,
Mecânicos, doutores e pedreiros!

À beira mar plantada,
Por turista és procurada
Pelas mais diversas razões
Sabes receber, és vaidosa,
Do jardim uma rosa,
Que desperta paixões!

És falada no estrangeiro,
Com vozes de orgulho a soluçar,
Pelos teus filhos, que pelo dinheiro,
Um dia tiveram de te deixar!

És poema, tela e melodia,
Tens perfil de rainha
Recheada de simpatia...
És Mulher, és Terra... és minha!

in... Balada da liberdade - MIGUEL BEIRÃO - Edição de autor

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segunda-feira, 12 de julho de 2010

Alquimia - NUNO GUIMARÃES


queria ser alquimista
poder brincar com poções
mudar alguns corações
que mudaram meu destino

pegar em ti, transportar-te
para um local bem distante
por magia transformar-te
num ser algo diferente
daquele que num dia quente
me marcou amargamente
com o sabor doce do engano

terá alguém a magia
de matar a nostalgia
e transformar, num repente
alguém de quem muito gostamos
num ser algo diferente?

in... Rio que corre indiferente - NUNO GUIMARÃES - Temas Originais

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domingo, 11 de julho de 2010

Anto - MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO


Caprichos de lilás, febres esguias,
Enlevos de ópio - Íris-abandono...
Saudades de luar, timbre de Outono,
Cristal de essências langues, fugidias...

O pagem débil das ternuras de cetim,
O friorento das carícias magoadas;
O príncipe das ilhas transtornadas -
Senhor feudal das Torres de marfim...

in...Poesias - MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO - Verbo

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sábado, 10 de julho de 2010

Revolução - SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN


Como casa limpa
Como chão varrido
Como porta aberta

Como puro início
Como tempo novo
Sem mancha nem vício

Como a voz do mar
Interior de um povo

Como página em branco
Onde o poema emerge

Como arquitectura
Do homem que ergue
Sua habitação

in... O nome das coisas - SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN - Caminho

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sexta-feira, 9 de julho de 2010

Lembrança - MIGUEL TORGA


Ponho um ramo de flores
na lembrança perfeita dos teus braços;
cheiro depois as flores
e converso contigo
sobre a nuvem que pesa no teu rosto;
dizes sinceramente
que é um desgosto.

Depois,
não sei porquê nem porque não,
essa recordação desfaz-se em fumo;
muito ao de leve foge a tua mão,
e a melodia já mudou de rumo.

Coisa esquisita é esta da lembrança!
Na maior noite,
na maior solidão,
vem a tua presença verdadeira,
e eu vejo no teu rosto o teu desgosto,
e um ramo de flores, que não existe, cheira!

in... Poesia completa vol.I - MIGUEL TORGA - Dom Quixote

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quinta-feira, 8 de julho de 2010

Em prisões baixas...* - LUIS VAZ DE CAMÕES


Em prisões baixas fui um tempo atado,
vergonhoso castigo de meus erros;
inda agora arrojando levo os ferros
que a Morte, a meu pesar, tem já quebrado.

Sacrifiquei a vida a meu cuidado,
que Amor não quer cordeiros, nem bezerros;
vi mágoas, vi misérias, vi desterros:
parece-me qu'estava assi ordenado.

Contentei-me com pouco, conhecendo
que era o contentamento vergonhoso,
só por ver que cousa era viver ledo.

Mas minha estrela, que eu já'gora entendo,
a Morte cega, e o Caso duvidoso,
me fizeram de gostos haver medo.

in...  Poesia lírica - LUIS DE CAMÕES - Verbo

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quarta-feira, 7 de julho de 2010

Meu país - MATILDE ROSA ARAÚJO


Meu país turístico de doce clima tão frio
De negras neves a caiar os montes
E os prados cansados
Tenho uma capa de degredo larvas de água triste
Nos cabelos húmidos
E pés descalços pelos sapatos do desengano
Meu país de água com o mar à beira
Meteste-me no fogo do ventre um coração parado
Pelas águas geladas de poluídos rios e gastos mares
E sou (fui) a emigrada presente que nem parte nem partiu
Não partirá
Arbusto mal plantado no suicídio do vento
Cobrindo o rosto com as folhas das mãos

in... Cem poemas portugueses no feminino - ANTOLOGIA - Terramar

terça-feira, 6 de julho de 2010

Regresso ao lar - GUERRA JUNQUEIRO


Ai, há quantos anos que eu parti chorando
Deste meu saudoso, carinhoso lar!...
Foi há vinte?... há trinta?... Nem eu sei já quando!...
Minha velha ama, que me estás fitando,
Canta-me cantigas para eu me lembrar!

Dei a volta ao mundo, dei a volta à Vida...
Só achei enganos, decepções, pesar...
Oh! a ingénua alma tão desiludida!...
Minha velha ama, com a voz dorida,
Canta-me cantigas para me adormentar!...

Trago d'amargura o coração desfeito...
Vê que fundas mágoas no embaciado olhar!
Nunca eu saíra do meu ninho estreito!...
Minha velha ama que me deste o peito,
Canta-me cantigas para me embalar!...

Pôs-me Deus outrora no frouxel do ninho
Pedrarias d'astros, gemas de luar...
Tudo me roubaram, vê pelo caminho!...
Minha velha ama, sou um pobrezinho...
Canta-me cantigas de fazer chorar!

Como antigamente, no regaço amado,
(Velho morto, morto!...) deixa-me deitar!
Ai, o teu menino como está mudado!
Minha velha ama, como está mudado!
Canta-lhe cantigas de dormir, sonhar!...

Canta-me cantigas, manso, muito manso...
Tristes, muito tristes, como à noite o mar...
Canta-me cantigas para ver se alcanço
Que a minh'alma durma, tenha paz, descanso,
Quando a Morte, em breve, ma vier buscar!...

in... Poesia - GUERRA JUNQUEIRO - Presença

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segunda-feira, 5 de julho de 2010

Cais - SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN


Para um nocturno mar partem navios,
Para um nocturno mar intenso e azul
Como um coração de medusa
Como um interior de anémona.
Naturalmente
Simplesmente
Sem destruição e sem poemas,
Para um nocturno mar roxo de peixes
Sem destruição e sem poemas
Assombrados por miríades de luzes
Para um nocturno mar vão os navios.
Vão.
O seu rouco grito é de quem fica
No cais dividido e mutilado
E destruído entre poemas pasma.

in... Mar novo - SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN - Caminho

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domingo, 4 de julho de 2010

Crepúsculo - DAVID MOURÃO FERREIRA


É quando um espelho, no quarto,
se enfastia;
quando a noite se destaca
da cortina;
quando a carne tem o travo
da saliva;
e a saliva sabe a carne
dissolvida;
quando a força de vontade
ressuscita;
quando o pé sobre o sapato
se equilibra...
É quando às sete da tarde
morre o dia
- que dentro de nossas almas
se ilumina,
com luz lívida, a palavra
despedida.

in... Obra poética - DAVID MOURÃO FERREIRA - Editorial Presença

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sábado, 3 de julho de 2010

Retrato de amigo - JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS


Por ti falo. E ninguém sabe.  Mas eu digo
meu irmão  minha amêndoa  meu amigo
meu torpel de ternura  minha casa
meu jardim de carência  minha asa.

Por ti morro  e ninguém pensa.  Mas eu sigo
um caminho de nardos empestados
uma intensa e terrífica ternura
rodeada de cardos por muitíssimos lados.

Meu perfume de tudo  minha essência
meu lume  minha lava  meu labéu
como é possível não chegar ao cume
de tão lavado céu?

in...  Obra poética - JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS - Edições avante

sexta-feira, 2 de julho de 2010

O amor também é dor - EDUARDO ALEIXO


O amor também é dor.
Somos como a terra;
Rasgada,
Ferida,
Molhada,
Ressequida,
Mas em cada Primavera
Renascida!
Somos como a terra!
Por isso, o amor
Também é dor,
Florida!...

in... As palavras são de água - EDUARDO ALEIXO - Chiado editora

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quinta-feira, 1 de julho de 2010

Jardim perdido - SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN


Jardim perdido, a grande maravilha
Pela qual eternamente em mim
A tua face se ergue e brilha
Foi esse teu poder de não ter fim,
Nem tempo, nem lugar e não ter nome.

Sempre me abandonaste à beira duma fome.
As coisas nas tuas linhas oferecidas
Sempre ao meu encontro vieram já perdidas.

Em cada um dos teus gestos sonhava
Um caminho de estranhas perspectivas,
E cada flor no vento desdobrava
Um tumulto de danças fugitivas.

Os sons, os gestos, os motivos humanos
Passaram em redor sem te tocar,
E só os deuses vieram habitar
No vazio infinito dos teus planos.

in... Dia do mar - SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN - Caminho

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