sexta-feira, 30 de abril de 2010

Soneto de Eurydice - SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN


Eurydice perdida que no cheiro
E nas vozes do mar procura Orpheu:
Ausência que povoa terra e céu
E cobre de silêncio o mundo inteiro.

Assim bebi manhãs de nevoeiro
E deixei de estar viva e de ser eu
Em procura de um rosto que era o meu
O meu rosto secreto e verdadeiro.

Porém nem nas marés, nem na miragem
Eu te encontrei. Erguia-se somente
O rosto liso e puro da paisagem.

E devagar tornei-me transparente
Como morte nascida à tua imagem
E no mundo perdida esterilmente.

in...Cem sonetos portugueses - SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN - Terramar

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quinta-feira, 29 de abril de 2010

Sonho - visão da história - ROBERTO DURÃO


A vida é como uma visão marinha
De um pescador cansado de lutar,
Que enfrenta a morte sem a achar daninha
Pois ela e mais outra ilusão do mar.

    Nas ondas vê searas por ceifar,
    No leme, um arado abrindo a terra plana.
    É lavrador agora o homem do mar,
    Desbravando a charneca alentejana.

Da vela fez bandeira de vitória
Que estremece nos ventos da memória
Enquanto o pão da terra amadurece...

    E o povo sonha, transformando a história.
    Outros, do seu suor, colhem a glória
    E terra e mar se fundem numa prece.

in...Trovas do meu pensar e do meu sentir - ROBERTO DURÃO - Editorial Minerva

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quarta-feira, 28 de abril de 2010

Estátua - CAMILO PESSANHA


   Cansei-me de tentar o teu segredo:
No teu olhar sem côr, - frio escalpello, -
O meu olhar quebrei, a debatel-o,
Como a onda na crista d'um rochedo.

   Segredo d'essa alma, e meu degredo
E minha obcessão! Para bebel-o,
Fui teu labio oscular, n'um pesadelo,
Por noites de pavor, cheio de medo.

   E o meu osculo ardente, hallucinado,
Esfriou sobre o marmore correcto
D'esse entreaberto labio gelado...

   D'esse labio de marmore, discreto,
Severo como um tumulo fechado,
Sereno como um pelago quieto.

in... Clepsydra - CAMILO PESSANHA - Relógio D'Água

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O poema respeita a grafia da época.

terça-feira, 27 de abril de 2010

A salada - ALBERTO CAEIRO


No meu prato que mistura Natureza!
As minhas irmãs as plantas,
As companheiras das fontes, as santas
A quem ninguém reza...

E cortam-nas e vêm à nossa mesa
E nos hotéis os hóspedes ruidosos,
Que chegam com correias tendo mantas,
Pedem "salada", descuidosos...

Sem pensar que exigem à Terra-Mãe
A sua frescura e os seus filhos primeiros,
As primeiras verdes palavras que ela tem,
As primeiras cousas vivas e irisantes
Que Noé viu
Quando as águas desceram e o cimo dos montes
Verde e alagado surgiu
E no ar por onde a pomba apareceu
O arco-íris se esbateu...

in... Poesia - ALBERTO CAEIRO - Assírio & Alvim

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Alberto Caeiro é um dos heterónimos de Fernando Pessoa

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Nós os vencidos do catolicismo - RUY BELO


Nós os vencidos do catolicismo
que não sabemos já donde a luz mana
haurimos o perdido misticismo
nos acordes dos carmina burana

Nós que perdemos na luta da fé
não é que no mais fundo não creiamos
mas não lutamos já firmes e a pé
nem nada impomos do que duvidamos

Já nenhum garizim nos chega agora
depois de ouvir como a samaritana
que em espírito e verdade é que se adora
Deixem-me ouvir a carmina burana

Nesta vida é que nós acreditamos
e no homem que dizem que criaste
se temos o que temos o jogamos
"Meu deus meu deus porque me abandonaste?"

in... Todos os poemas II - RUY BELO - Assirio & Alvim

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domingo, 25 de abril de 2010

Pedra filosofal - ANTÓNIO GEDEÃO


Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contaponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão de átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

in... Obra completa - ANTÓNIO GEDEÃO - Relógio D'Água

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sábado, 24 de abril de 2010

A noite desce... - FLORBELA ESPANCA


Como pálpebras roxas que tombassem
Sobre uns olhos cansados, carinhosas,
A noite desce... Ah! doces mãos piedosas
Que os meus olhos tristíssimos fechassem!

Assim mãos de bondade me embalassem!
Assim me adormecessem, caridosas,
E em braçadas de lírios e mimosas,
No crepúsculo que desce me enterrassem!

A noite em sombra e fumo se desfaz...
Perfume de baunilha ou de lilás,
A noite põe-me embriagada, louca!

E a noite vai descendo, muda e calma...
Meu doce Amor, tu beijas a minh'alma
Beijando nesta hora a minha boca!

in... Sonetos - FLORBELA ESPANCA - Bertrand

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sexta-feira, 23 de abril de 2010

54 - RICARDO REIS


Cada um cumpre o destino que lhe cumpre,
E deseja o destino que deseja;
          Nem cumpre o que deseja,
          Nem deseja o que cumpre.

Como as pedras na orla dos canteiros
O Fado nos dispõe, e ali ficamos;
          Que a Sorte nos fez postos
          Onde houvemos de sê-lo.

Não tenhamos melhor conhecimento
Do que nos coube que de que nos coube.
          Cumpramos o que somos.
          Nada mais nos é dado.

in... Poesia - RICARDO REIS - Assírio & Alvim

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Ricardo Reis é um do heterónimos de Fernando Pessoa. Os poemas deste livro são numerados.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Fermosura - ANTÓNIO FERREIRA


Ao Touro cornos, unhas ao Leão,
Voar à Águia, ao Cervo ligeireza,
E a todas as mais Feras quantas são,
Deu sua arma, e sua força a Natureza.
Ao homem deu esforço, e boa razão:
Não tem que dar à feminil fraqueza.
Pois que lhe deu? ah deu-lhe fermosura,
Arma que ferro e fogo inda mais dura.

in...Castro e Poemas lusitanos - ANTÓNIO FERREIRA - Editorial Verbo

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quarta-feira, 21 de abril de 2010

Um dia - NATÉRCIA FREIRE


Um dia partirei, muito cansada,
Com as lembranças cingidas ao meu peito
E uma voz de saudade e de nortada.

(Levarei voz para gemer de espanto.
Levarei mãos para dizer adeus...
Olhos de espelho, e não olhos de pranto,
Eu levarei. Os olhos, serão meus?)

Um dia partirei, talvez amanhã.
Uma canção de amor virá das dunas.
De finas pernas, seguirei a margem
Límpida, boa, enorme, no ribeiro
De água discreta a reflectir miragem.
Braços de ramos, gestos de salgueiro.

Um dia partirei, muito diferente.
Enfim, aquela que jamais eu fora!
E os de Cá hão-de achar que vou contente.

in... Antologia poética - NATÉRCIA FREIRE - Assírio & Alvim

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terça-feira, 20 de abril de 2010

Sentir - HUGO COSTEIRA


Sentir sentindo,
passando por perto,
sorriso ao largo
para ponto incerto!
Miragem das águas,
sonhos ausentes,
admirando-te,
continuando a sentir!
Sonhos já abertos,
realidades,
beijos que marcam!
O teu cheiro,
o teu cabelo,
as minhas mãos percorrem-te
em tons de abraço!
Tu! Tu e sempre tu!
Olhares que prendem,
mãos entrelaçadas,
prado de orquídeas selvagens
da minha vida!

in... Manual da ilusão - HUGO COSTEIRA - Temas Originais

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segunda-feira, 19 de abril de 2010

De que falamos? - ANA HATHERLY


De que falamos
quando falamos das palavras
senão do tempo
que corre-escorre
por entre as malhas da voz?

Faladas
as palavras
são um combate encenado
uma insónia pessoal
Escritas
são reféns do olhar

No espaço da página
deslizam altivas como icebergues
ou então soçobram
desconhecidamente
no lado sombrio do funesto olvido

in... O pavão negro - ANA HATHERLY - Assírio & Alvim

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domingo, 18 de abril de 2010

8* - CASIMIRO DE BRITO


Não escolho nada deixo-me vestir
Pela música discreta que tacteia
Meu corpo em sua breve caminhada.

Não desejo nada consinto apenas
Que a dor me visite e a jovem ceifeira,
Mãe das coisas todas, me seduza.

Não escolho nada nem sequer o vaso
Onde me derramo devagar
Como se fosse água, ou leve lume.

in... Na via do Mestre - CASIMIRO DE BRITO - Temas Originais

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* Os poemas deste livro são numerados

sábado, 17 de abril de 2010

Sabemos que o tempo passou* - LUIS FALCÃO


Sabemos que o tempo passou
Que alguma coisa deveria ter sido dita
(talvez depois, talvez mais tarde)
Deixamos atrás de nós
Uma sequência desconexa de gestos irreparáveis
E, feridos,
Por todas as coisas
que poderíamos ter evitado a nós próprios
Caminhamos para o silêncio
E para a escuridão indefinível dos bosques.

in... Pétalas negras ardem nos teus olhos - LUIS FALCÃO - Assírio & Alvim

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* Os poemas deste livro não são titulados. Usei o primeiro verso como titulo por questões logísticas.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Ideias - TÉOFILO VELHO


Ideias
Ideias fúlgidas,
Ideias esquivas!
No minguo privilégio
Que as ideias emancipam
Quando eximem alvitres que se ouvem
Como alguém que se lembrou de estar connosco!

Ideias são sequelas de grandezas
Que se assumem ferozmente, e por vezes,
Em devaneios sãos,
São como alguém que nos pronuncia
Salvação e ajuda

in... Partiste sem me olhar - TÉOFILO VELHO - Sete Caminhos

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Glosa - ANTÓNIO ALEIXO



MOTE

Fui uma noite pintar
Com um caneco emprestado;
Eu pintei sem reparar,
Pintei e fiquei pintado

GLOSAS

Eu comecei com jeitinho
A compor o ramalhete;
Primeiro foi com azeite
E depois foi com cuspinho.
No começo era estreitinho,
Custava o pincel a entrar...
Começa a dona a gritar:
"Não me parta a tigelinha",
Mas que coisa engraçadinha,
Fui uma noite pintar...

Comecei devagarinho...
Quando fui ao outro mundo
Meti o pincel ao fundo
E parti o canequinho.
Até mesmo o pincelinho
Veio de lá todo pintado,
Eu já estava desmaiado,
Perdendo as cores do rosto;
Mas pintei com muito gosto
Com um caneco emprestado.

Vem a mãe toda zangada:
"Tem que pagar-me a vasilha...
No caneco da minha filha
Não pinta você mais nada...
... Lá isto, a moça deitada,
Sem poder-se levantar,
Com tanta tinta a pingar
No lugar da rachadela!..."
"Diga lá, que desculpe ela,
Eu pintei sem reparar"...

P'ra que vejam que sou pintor
E meu pincel nunca deixo,
P'ra que saibam que o Aleixo
Não é somente cantor...
Também pinto qualquer flor
E faço qualquer bordado;
Mas aqui o ano passado,
Perdi, de pintar, o tino...
Fui pintar, fiz um menino,
Pintei e fiquei pintado.

in... Este livro qe vos deixo II - ANTÓNIO ALEIXO - Casa das letras

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quarta-feira, 14 de abril de 2010

Já que o coito...* - NATÁLIA CORREIA

" O acto sexual é para fazer filhos", afirmação no Parlamento de João Morgado, deputado do CDS

"Já que o coito - diz Morgado -
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca;
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai só de um rebento,
lógica é a conclusão
de que viril instrumento
só usou - parca ração! -
uma vez. E se a função
faz o órgão - diz o ditado -
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado."

in... Cem poemas portugueses do riso e do maldizer - Antologia - Terramar

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* Este poema não tem titulo. Usei o primeiro verso como titulo por questões logísticas.

terça-feira, 13 de abril de 2010

A palavra da vida - ANTÓNIO MR MARTINS


Não deformes
A palavra
Nem a penalizes

Não difames
Sem contexto
Nem provoques deslizes

Não adornes
A questão
Nem a eternizes

Não alimentes
Defeitos
Nem a descaracterizes

Não lhe alteres
O conceito
Nem a desvalorizes

Aplica-a
Com preceito
Como fazem os felizes

in... Antologia de escritas 7 - Antologia - Encontro de escritas

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segunda-feira, 12 de abril de 2010

Memória ao abandono - SÉRGIO GODINHO


Memória ao abandono
a válvula do sono
aberta.
Desdobra panos
hélice, ela
a grande borboleta
se é por pousar
já pousou -
despejando o vento
na abertura do vulcão
encaminhando a lava
no sentido giratório.

Antes
tive medo de ter sono
agora
é planeta a planeta.

in... O sangue por um fio - SÉRGIO GODINHO - Assírio & Alvim

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domingo, 11 de abril de 2010

O sonho do Grilo - EDUARDO REBELO


"- Diga lá, óh seu grilinho,
Você que canta tão bem,
Por que não é passarinho,
E não voa mais além?"

"-Ora, isso quisera eu,
Voar alto e bem distante,
Ser um condor-pigmeu,
Vaguear pelo céu errante!

Ir para além das montanhas,
Enfrentar todos os perigos,
Poder contar tais façanhas
Aos animais meus amigos.

Mas eu vivo bem assim,
Logo, não aspiro a tanto,
O que tenho é bom p'ra mim,
Sou feliz... por isso canto!"

in... Para os meus netos Poemas a brincar - EDUARDO REBELO - Caminho das águas

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sábado, 10 de abril de 2010

...A Parte de Ti... - YEGAMINO

Livro gentilmente oferecido pelo autor

Procura-me debaixo das nuvens que choram a distância,
No canto das ondas que lavam a tua recordação.
Procura-me nas palavras não ditas que ouviste,
No resmungo miúdo da madeira que o fogo consome.

Procura-me nas cortinas que te afastam do real,
No espelho quebrado que justifica o teu pesar.
Procura-me nas superstições malditas que tens,
Procura-me por magia, mas aí não me acharás.

Procura-me pelo rasto de pedras que deixei,
Por detrás dos muros que nos separaram dantes.
Procura-me nos rostos magoados dos transeuntes,
Nos pratos corroídos de onde ninguém come.

Procura-me na música desafinada que escutas,
Procura-me no sopro e nas teclas, até na voz;
Procura-me na sombra de objectos que não vês,
Procura-me na calçada, mas aí não me acharás.

Procura-me até te cansares de me procurar,
Pois em lugar nenhum eu me encontro.
No confronto entre a verdade e o querer,
Hás-de saber que é em ti que me vais achar.

in... Detrás da sombra - YEGAMINO - Corpos editora

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Para quem estiver interessado em ler a minha opinião sobre a totalidade deste livro pode ler o meu artigo clicando aqui

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Os atalhos do vento - JOSÉ RICARDO NUNES


O vento desenha atalhos
para quem se demora a regressar a casa.
Debaixo do braço o jornal
que não se lê, vitima
de mais um dia em que não se aguardou
por um momento, um dia
a mais, de vozes inaudíveis
e sem compreensão. Bate com os pés
nos degraus, limpa a lama e a luz.

in...Novas razões - JOSÉ RICARDO NUNES - Gótica

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quinta-feira, 8 de abril de 2010

Quadras - ANTÓNIO ALEIXO


Vou-te falar com franqueza,
Disseste... mas não previste
Que assim me deste a certeza
Que até então me mentiste.

P'ra veres o que merecias
Quando tu me fazes mal,
Pensa só no que farías
A quem te fizesse tal.

Tu andas cheio, eu vazio;
Tens à escolha o que quiseres.
Comes o melhor que eu crio,
E como o que tu não queres.

Porque as pequenas se encostem,
Não vos deve causar espanto...
Eu não estranho que elas gostem
Do que nós gostamos tanto.

Não és alta nem és baixa;
És a mais linda entre flores.
É pena servires de caixa
A tantos engraxadores.

Quando com outro te vi,
Pensei, sem que tu notasses:
"Já quis dar tudo por ti..."
Hoje, nem que me pagasses.

Amor, perdoa... Não nego:
Quando vejo coisas belas,
Fico doido, fico cego,
Só ando ás apalpadelas.

Tenho, contra o meu desejo,
Na minha boca, beldade,
Metade de um lindo beijo
... Tu tens a outra metade!

Um beijo é simples gracejo
Quando for dado na face;
Mas quatro lábios num beijo
Formam um beijo de classe!

Certas viúvas discretas,
De luto pesado em cima,
Lembram cachos de uvas pretas,
A pedir outra vindima.

in... Este livro que vos deixo... II - ANTÓNIO ALEIXO - Casa das letras

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quarta-feira, 7 de abril de 2010

Poema - MÁRIO CESARINY


Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto   tão perto   tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

in... Uma grande razão  - MÁRIO CESARINY - Assírio & Alvim

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terça-feira, 6 de abril de 2010

Mas dia a dia* - RICARDO REIS**


Mas dia a dia
Com lapso gradual vai hora a hora
A vida vã tornando-se mais fria,
Vai descorando a face,
E a alma, acompanhando

Ah, saibamos mostrar
À vida a força de a aceitar,
Indiferentes tanto
Ao riso como ao pranto,
E, spectadores de nós próprios, nada
Na nossa consciência elucidada.

in... Poesia - RICARDO REIS - Assírio & Alvim

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*Os poemas deste livro são numerados. Usei o primeiro verso como titulo por uma questão logistica.
** Ricardo Reis é um dos heterónimos de Fernando Pessoa

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Ser poeta - FLORBELA ESPANCA


Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

in... Sonetos - FLORBELA ESPANCA - Bertrand

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domingo, 4 de abril de 2010

Oração - JAIME CORTESÃO


Tu, que és a minha Filha e a minha Mãe,
Que andas ao meu e trazes-me ao colo,
Tu que me arrolas, Tu, a quem arrolo
Para que mais quietinha durmas bem;

Tu que me enches de mimo, Tu a quem
Só eu nas mágoas íntimas consolo,
Pequenina e leal 'strela do Pólo,
Única estrela firme que o Céu tem,

Olha, minha Mãezinha, o teu menino
De sofrer e chorar perde o sentido:
Vê se o tornas de novo pequenino,

E nessa doce voz, como não há,
Sobre o teu seio canta-lhe ao ouvido:
"Sossegue e durma, meu menino, vá..."

in... Poesia - JAIME CORTESÃO - Imprensa nacional-casa da moeda

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sábado, 3 de abril de 2010

À chegada dos dias grandes - RUY BELO


Da luva lentamente aliviada
a minha mão procura a primavera
Nas pétalas não poisa já geada
e o dia é já maior do que ontem era

Não temo mesmo aquilo que temera
se antes viesse: chuva ou trovoada
É este o deus que o meu peito venera
sinto-me ser eu que não era nada

A primavera é o meu país
saio à rua sento-me no chão
e abro os braços e deito raiz

e dá flores até a minha mão
Sei que foi isto que sem querer quis
e reconheço a minha condição

in... Todos os poemas I - RUY BELO - Assírio & Alvim

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sexta-feira, 2 de abril de 2010

Azul que em azul te desdobras* - VICTOR OLIVEIRA MATEUS


Azul que em azul te desdobras.
Cerco de baías. Moldura de espuma.
De penhascos afagados pelo vento.
É na linha do fogo que te desenho,
Ó insubmissa de vagas e fulgores!
É em ti que me renovo, Cítera,

a dos amores. E por ti diariamente
renasço, ilha que em ilhas
te desdobras, onde me apoio
e urdo a teia que sempre refaço,
com o Cabo de Maleia ao fundo;
lâmina apontada ao meu peito

lasso. Aqui me fico, envolto em
algas e sargaço. Azul que em azul
te desdobras das chaminés das casas
ao dúctil reflexo do horizonte;
percurso onde sempre me busco
e busco do ser sua nítida fonte.

in... A irresistível voz de Ionatos - VICTOR OLIVEIRA MATEUS - Labirinto

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* Os poemas deste livro são numerados. Usei o primeiro verso como titulo por questões logisticas 

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Quadras - ANTÓNIO ALEIXO


Co'o mundo pouco te importas
Porque julgas ver direito.
Como há-de ver coisas tortas
Quem só vê em seu proveito?

À guerra não ligues meia,
Porque alguns grandes da terra,
Vendo a guerra em terra alheia,
Não querem que acabe a guerra.

Vós que lá do vosso império
Prometeis um mundo novo,
Calai-vos, que pode o povo
Q'rer um mundo novo a sério.

Há luta por mil doutrinas.
Se querem que o mundo ande
Façam das mil pequeninas
Uma só doutrina grande.

Tenho fé nas almas puras,
Embora viva enganado;
Não troco esp'ranças futuras
Pelas glórias do passado.

Que importa perder a vida
Em luta contra a traição,
Se a Razão, mesmo vencida,
Não deixa de ser Razão?

Enquanto o homem pensar
Que vale mais que outro homem,
São como os cães a ladrar,
Não deixam comer, nem comem.

Foste mordido como eles,
Sofreste, e sem que o recordes,
Agora mordes naqueles
Que sofrem quando lhes mordes.

Há muitos que são alguém...
Mas no mundo onde alguém são,
Nunca seriam ninguém,
Se alguém não lhes desse a mão.

Sei que pareço um ladrão...
Mas há muitos que eu conheço
Que, sem parecer o que são,
São aquilo que eu pareço.

in... Este livro que vos deixo... I - ANTÓNIO ALEIXO - Casa das letras

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