segunda-feira, 31 de maio de 2010

Talvez... - ANTÓNIO CASTEL-BRANCO


Talvez o instante não seja este...
Talvez não seja o modo certo...
Talvez não consiga encontrar as palavras...
Talvez persista na teimosia de existir...
Talvez pense...
E talvez encontre nas expressões
amarguradas que envolvem o sofrimento...
Ou reviva nos olhares mortiços
que fazem ouvir o grito das almas...
Ou até abrace as nuvens de silêncio
que toldam o sentir com névoa piedosa...
Talvez veja...
E seja a escora, o pêndulo, a bússola...
o caminho seguido outrora que de novo se abre...
as vagas trazendo as novas em cada maré...
os sonhos nunca sonhados ousados sonhar...
o porto seguro que aguarda para te amparar...
Talvez...

in... Jardim de palavras - ANTÓNIO CASTEL-BRANCO - Temas Originais

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domingo, 30 de maio de 2010

A um velho maldizente - MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE


Tu, maligno dragão, cruel harpia,
Monstro dos monstros, fúria dos infernos,
Que em vil murmuração, ralhos eternos
Estragas sem descanso a noite, e o dia:

Tu, que nas horas em que o mocho pia,
Caluniaste meus suspiros ternos,
Sacode a carga de noventa invernos
Nas descarnadas mãos da morte fria:

Cai de chofre no báratro profundo,
Cai nas entranhas da voraz fornalha,
Deixa em sossego o miserável mundo:

E entre a maldita, réproba canalha,
Lá bem longe de nós, lá bem no fundo,
Arde, murmura, amaldiçoa,e ralha.

in... Antologia poética - MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE - Verbo

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sábado, 29 de maio de 2010

Estátua falsa - MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO


Só de oiro falso os meus olhos se douram;
Sou esfinge sem mistério no poente.
A tristeza das coisas que não foram
Na minh'alma desceu veladamente.

Na minha dor quebram-se espadas de ânsia,
Gomos de luz em treva se misturam.
As sombras que eu dimano não perduram,
Como Ontem, para mim. Hoje, é distância.

Já não estremeço em face do segredo;
Nada me aloira já, nada me aterra:
A vida corre sobre mim em guerra,
E nem sequer um arrepio de medo!

Sou estrela ébria que perdeu os céus,
Sereia louca que deixou o mar;
Sou templo prestes a ruir sem deus,
Estátua falsa ainda erguida ao ar...

in... Poesias - MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO - Verbo

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sexta-feira, 28 de maio de 2010

A minha família ou qualquer outra - ANTÓNIO MR MARTINS


 

O suporte da nossa existência,
da infância à idade adulta,
são os carinhos e a prudência
de pessoas simples e gente culta.

Educado pelo pai e também pela mãe,
companhia da esposa, depois o filho,
supremos valores que uma vida tem
e me fizeram viver com muito brilho.

Do seio familiar provém o afago
por todas ou por uma simples hora,
seja nas tristezas ou nas alegrias...

Dela a recordação eu sempre trago,
nos meus caminhos e pela vida fora,
sem qualquer tipo de hipocrisias!...

in... Quase no feminino - ANTÓNIO MR MARTINS - Temas Originais

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O autor ANTÓNIO MR MARTINS e a Temas Originais têm o prazer de convidar a estar presente na sessão de lançamento do livro "FOZ SENTIDA" a ter lugar no Auditório do Campo Grande, 56, em Lisboa, no próximo dia 29 de Maio, pelas 19.00

Obra e autor serão apresentados pela Drª Zulmira Sizifredo

A entrada é livre. 

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Falas de civilização...* - ALBERTO CAEIRO**


Falas de civilização, e de não dever ser,
Ou de não dever ser assim.
Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos,
Com as cousas humanas posta desta maneira.
Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos.
Dizes que se fossem como tu queres, seria melhor.
Escuto sem te ouvir.
Para quê te quereria eu ouvir?
Ouvindo-te nada ficaria sabendo.
Se as cousas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo.
Se as cousas fossem como tu queres, seriam só como tu queres.
Ai de ti e de todos que levam a vida
A querer inventar a máquina de fazer felicidade.

in... Poesia - ALBERTO CAEIRO - Assírio & Alvim

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* Este poema não é titulado. Usei parte do 1º verso como titulo por questões logísticas.

** Alberto Caeiro é um dos heterónimos de Fernando Pessoa 

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Poema sem esperança - ANTÓNIO GEDEÃO


Toda a esperança que tive a dividi
por quantos a quiseram receber.
Deles espero agora que a devolvam
com novo rosto e acrescentado juro.
A esperança era fingida, toda feita
de conscientes manhas e de enganos,
tão bem arquitectada que passava
por sincera, vivida, verdadeira.
Era uma esperança imposta, necessária
para as voltas dos dias e das noites,
sem roupagens, sem véus, sem adereços
como na estatuária se apresenta.
Uma esperança sem esperança, alimentada
a soro e drogas no hospital das letras:
no escuro, ensimesmada como um feto;
na luz, extravasada como adulto.
Transferindo-me a outros me recolho
e me fico, de ouvidos apurados,
num solitário andar entre automóveis
nas poluídas ruas da cidade.

in... Obra completa - ANTÓNIO GEDEÃO - Relógio D'Água

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terça-feira, 25 de maio de 2010

Vejo teus dedos queimar... - TOMAZ KIM


Em cavernas de lilás e mar
jaz a minha alma a mendigar,
a bailar
reflexos, cemitério, luar...
Num altar
vejo teus dedos queimar
rosas,
ecos, sombras sedosas
de mim,
por mim,
em noites de sândalo criadas,
em noites de bronze destroçadas...

in... Obra poética - TOMAZ KIM - INCM

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segunda-feira, 24 de maio de 2010

A Norte da morte - HENRIQUE PEDRO


Hoje
Mais do que nunca
Viver é perceber a morte

Percebemo-lo pelos jornais
Pelos hospitais
Pelas tragédias aéreas
Pelas extremas misérias

Por isso andamos sempre a fugir
A tentar iludir a sorte

Mas os dias acabam também
Por acelerar o passo
E a nos reduzir o espaço

Eu tento fugir
Para Norte
Para junto da estrela polar
Convicto de que ali
A morte
Não me irá alcançar

in... Angústia, Razão e Nada - HENRIQUE PEDRO - Temas Originais

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domingo, 23 de maio de 2010

Dos castanheiros a folhagem árida* - GASTÃO CRUZ


Dos castanheiros a folhagem árida
já desce no ar morto que se move
dentro da palidez do céu de outono
sobre as aves imóveis

Movem-se as folhas só na tarde escassa
de clareiras do sol movem-se as aves
extintas do outono
dentro dele e do sol

que mais que as aves mortas sob as árvores
se move
e movem-se aves

mais do que as folhas que do alto caem
mas sem sol grande as aves não se movem
nem já não caem com a calma as aves

in... Outro nome/Escassez/As aves - GASTÃO CRUZ - Assírio & Alvim

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* Os poemas deste livro não são titulados. Usei o 1º verso como titulo por questões logísticas.

sábado, 22 de maio de 2010

O apelo do mar - JOSÉ AUGUSTO DE CARVALHO


A terra acaba aqui. Além daqui, o mar!
E o mar, inquieto, acena noite e dia...
Na linha do horizonte, o céu, na fantasia,
descendo vai, até nas águas mergulhar.

Nas noites de procela, uivante, a ventania
à praia traz a dor chorada, a soluçar.
E a praia, condoída, intenta consolar
a dor que vem do ignoto, assim, salgada e fria.

A dança das marés os homens alucina.
Que estranha tentação os embriaga tanto
e em rara sedução partir lhes determina?

Ousada, a barca apruma o seu perfil de espanto!
O sol de Abril desfaz a matinal neblina.
Ao largo, o mar entoa enfeitiçado canto.

in... Do mar e de nós - JOSE AUGUSTO DE CARVALHO - Temas Originais

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sexta-feira, 21 de maio de 2010

Lacrimatória 13 - JAIME ROCHA


O homem contempla tudo isto, parado, como
se o tivessem metido numa estátua. Uma outra
mulher, a que levou a barca até à ilha, encosta-se
ao túmulo e envolve-o com o corpo. Parece um
casulo de seda, alguém amortalhado que transporta
uma culpa, mas os seus gestos cruzam-se com os
ramos caídos, enrosca-se neles e afasta-se para as
falésias. Fica junto dos cipestres e transforma-se
num deles, num ser antigo que toma conta dos
túmulos. O homem é enrolado pelo frio, no chão,
esperando pela maré, mas já não vê a barca, nem
a remadora, nem a lua surge com a noite para
homenagear os sepulcros.

in... Lacrimatória - JAIME ROCHA - Relógio D'Água

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quinta-feira, 20 de maio de 2010

Começamos por abandonar as palavras* - FERNANDO ESTEVES PINTO


Começamos por abandonar as palavras,
mas nunca aquilo que pensamos.
O pensamento incendeia-se no silêncio, faz o seu trabalho.
Aceitamos e rejeitamos e é isso que constrói o pensamento.
É neste equilíbrio que permanecemos.

Estar imóvel é ir além do lugar onde estamos,
olharmo-nos de lá para cá, de dentro para dentro.
Abandonamos as palavras, mas nunca o pensamento.

in... Área afectada - FERNANDO ESTEVES PINTO - Temas Originais

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* Os poemas deste livro não são titulados. Usei o 1º verso como titulo por questões logísticas.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Trópico - RODOLFO MIGUEL BEGONHA


Os deuses que me levam na mão,
são as minhas loas: espíritos da floresta!
Saíram para a noite intensa, tropical,
para me fazerem saborear cada momento.
Sou transportado pelas divindades vivas,
no som dos sapos, dos insectos, das aves,
das rãs, dos morcegos e das tempestades.
E são eles que me enfeitiçam a cada passo!

Que privilégio este, tão egoísta!
Que louca sensação húmida, etérea!
Que benção quente, lânguida e folhosa!
Poder fundir-se na penumbra quente,
ser eu mesmo, ser selva por uma só noite,
sonhada em todas as outras noites... distantes.

in... Elementos - RODOLFO MIGUEL BEGONHA - Papiro Editora

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terça-feira, 18 de maio de 2010

No canto do sabiá encontro paz* - GLEIDSTON CÉSAR**


No canto do sabiá encontro paz.
Da janela do meu quarto
Todas as manhãs aprecio seu voo.
É livre, seu canto é espontâneo,
No cântico da sua melodia meu dia faz-se luz.
Me pergunto se sou livre como este
Pássaro, se minha melodia faz sentido
Ou se minha complacência é original?
Quero ser livre como o voo do sabiá.
Que minha melodia faça sentido nos
Voos por onde for. É preciso ser livre
Para amar em liberdade. Sendo livre
A sintonia na melodia encontra a liberdade
Natural para exprimir a real suavidade.

in... Os sentimentos por detrás das palavras - GLEIDSTON CÉSAR - Temas Originais

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* Os poemas deste livro não são titulados. Usei o primeiro verso como titulo por questões logísticas.

** GLEIDSTON CÉSAR é um poeta brasileiro radicado em Portugal desde 2000

segunda-feira, 17 de maio de 2010

24 - JAIME ROCHA


Tudo está a ser desenhado por um arquitecto.
Primeiro as casas, depois os homens. E só então
se define o leito de todas as mortes. Os pássaros
removem a palha por entre os tijolos, enquanto
o arquitecto olha para o espelho e revê a cidade
antiga. Como o reflexo acaba nas margens do vidro,
ele constrói para cima em direcção ao sol até que
os prédios ardam e as cinzas transformem o chão
numa cintura de veludo.

in... Do extremínio - JAIME ROCHA - Relógio D'Água

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domingo, 16 de maio de 2010

Nas cidades de onde venho* - VICTOR OLIVEIRA MATEUS


Nas cidades de onde venho
secam as árvores ao som das sirenes
e os pássaros, alucinados, buscam direcções
nas pupilas das crianças.
Nessas cidades tudo é pressa e desassossego,
enquanto os homens, improvidentes, desprendem
a sublime auscultação da Terra;
nem sequer o coração dos outros pode ler
ou o rumor inconsolável das águas
- para eles aquilo que apenas vêem!
E com um nó no peito desatado
pintam de harmonia um novo Caos

in... Pelo deserto as minhas mãos - VICTOR OLIVEIRA MATEUS - Coisas de ler

sábado, 15 de maio de 2010

I - VIEIRA CALADO


Transitamos através da luz
somos a pura contemplação da luz
a linguagem o cinzel dum barco
em perpétuas lúdicas viagens
ao interior dum mapa

e os nossos olhos acendem as manhãs
ébrios pela plenitude das manhãs
na linguagem alada dos sentidos e das seivas,
o desígnio que se lê pelo seio dos rios
as ervas que ecoam pelos caminhos duros.

São a nossa mais delicada ansiedade
mas também a nossa paixão as suas divagações
a fantasia e o delírio descrito nas viagens
ao fim dum mundo imaginário
perpétuo de idas e regressos
no oculto obscurecido dos olhos
que ignoram o modo sereno da luz e do pó.

in... Viagem através da luz - VIEIRA CALADO - Papiro Editora

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sexta-feira, 14 de maio de 2010

Mais Além - LUIS FERREIRA





Crio... Sinto...
Os gestos...
Que moldo em argilas,
De mãos vazias,
As silhuetas do tempo.
No corpo íntimo,
Cálice da vida...
Os momentos que ficam,
Perpétuos e infinitos
Suspiros de sentimentos.
Navego nos céus
Onde me deito...
Sonho...
Entre os despertares
Na aurora inicial
Em que acordo.
Esvoaço...
Cruzando o mapa
Do intenso saber,
Olhar amplo,
Acendo lamparinas
Como o vento.
Suspiro...
Na luz que brilha,
Arte que fica
Neste desejo de voar.

in... Momentos - LUIS FERREIRA - Temas Originais

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O Autor Luis Ferreira e a Temas Originais têm o prazer de o convidar a estar presente na sessão de apresentação do livro "MOMENTOS...", a ter lugar no Auditório do Campo Grende, 56, Lisboa, no próximo dia 15 de Maio, pelas 16 horas.
Obra e autor serão apresentados pelo escritor e jornalista Alfredo Vieira e esta sessão contará com a leitura de poemas por Cecília Melo e Castro.
A entrada é livre.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Em litorais longínquos* - GRAÇA PIRES

Prémio Nacional Poeta Ruy Belo

Em litorais longínquos
as mulheres deitam-se sobre a areia
junto à rebentação das ondas.
Com os braços em cruz
afastam as embarcações costeiras
e aguardam que a lua inteira
inicie um inesperado bailado
perto das suas bocas.
E não há âncora nem cais
que emudeça o júbilo dos mastros.

in... O silêncio: lugar habitado - GRAÇA PIRES - Labirinto

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*Os poemas dese livro não são titulados. Usei o 1º verso como titulo por questõe logísticas.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Este cantar dos anos de pobreza* - GASTÃO CRUZ


Este cantar dos anos de pobreza
diferente da vida e tão diverso
do poderoso som da esperança

por entre os dentes vis de que se nutre
a sua boca
sopra da aflição a turva música

Este cantar dos anos que a mudança
do canto fez diverso da esperança
é um canto de esperança enquanto canta

in... Outro nome/Escassez/As aves - GASTÃO CRUZ - Assírio & Alvim

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* Este poema não é titulado. Usei o 1º verso como titulo por questões logísticas.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Visão dois - JAIME ROCHA


Não se tratava já de um corpo, mas de
uma massa enrolada, um tapete
persa deitado ao acaso em cima
de uma cama. Havia uma poeira dourada
colada à cintura e o resto do que fora
uma saia. Era dali que saía um eco.
Como se o corpo estivesse vazio e os ossos
se transformassem em cobras brancas.

in... Os que vão morrer - JAIME ROCHA - Relógio D'Água

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segunda-feira, 10 de maio de 2010

Poema - ANTÓNIO MEGA FERREIRA


Uma nota só, de desordem persistente,
a vibrar no abismo das coisas,
no mapa dos delitos;
acarinhando o pequeno remorso precioso
dos fins por atingir;
dobrando o tempo numa curvatura baixa
que cinge os tornozelos
da fugidia esfinge;
uma nota só, de correcção insidiosa,
na dádiva natural do tempo já vivido,
de dor aflitiva pela palidez das coisas
e o seu nome por dizer.

Falando sempre, sempre lamentando
o que ficou por decidir.

in... O tempo que nos cabe - ANTÓNIO MEGA FERREIRA - Assírio & Alvim
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domingo, 9 de maio de 2010

O ditador - CASIMIRO DE BRITO


Soterrado num palácio
fazes história
com as mãos vazias do meu povo
longo deserto ajoelhado
em buracos cavados na terra
em áfricas
em vãos de escada

Colado ao silêncio
mais silencioso
(à sombra de armas
abrigado)
inundas as caves da história
com a morte acumulada
do meu povo

in...Jardins de guerra - CASIMIRO DE BRITO - Assírio & Alvim

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sábado, 8 de maio de 2010

Ternura - DAVID MOURÃO-FERREIRA


Desvio dos teus ombros o lençol,
que é feito de ternura amarrotada,
de frescura que vem depois do sol,
quando depois do sol não vem mais nada...

Olho a roupa no chão: que tempestade!
Há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
onde uma tempestade sobreveio...

Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa ternura anda sorrindo...

Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós!

in... Obra poética - DAVID MOURÃO-FERREIRA - Editorial Presença

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sexta-feira, 7 de maio de 2010

Ao crepúsculo - JAIME CORTESÃO


Vejo-te, doce mulher,
Toda em penumbra envolvida,
Como figura esbatida
Duma tela de Carrière.

O teu lábio não profere
Um ai, um sopro de vida:
De calada e recolhida,
Quase nem sorris sequer.

Só esse olhar infinito,
Posto em mim sempre de fito,
Na grande sombra reluz;

Assim a estrela da tarde,
Lágrima quieta, não arde,
Mas enche o espaço de luz.

in... Poesia - JAIME CORTESÃO - INCM

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quinta-feira, 6 de maio de 2010

Suavidade - FLORBELA ESPANCA


Pousa a tua cabeça dolorida
Tão cheia de quimeras, de ideal,
Sobre o regaço brando e maternal
Da tua doce Irmã compadecida.

Hás-de contar-me nessa voz tão qu'rida
A tua dor que julgas sem igual,
E eu, pra te consolar, direi o mal
Que à minha alma profunda fez a Vida.

E hás-de adormecer nos meus joelhos...
E os meus dedos enrugados, velhos,
Hão-de fazer-se leves e suaves...

Hão-de pousar-se num fervor de crente,
Rosas brancas tombando docemente,
Sobre o teu rosto, como penas de aves...

in... Sonetos - FLORBELA ESPANCA - Bertrand

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quarta-feira, 5 de maio de 2010

Aos poetas de café - TOMAZ KIM


Aqui se constrói a cidade de sol:
Alegria e pão,
Em versos com rima e tudo
E o mais que nestes falta.

Aqui morrem os tiranos,
Expulsam-se os vendilhões,
Contam-se os trinta dinheiros
Da venda
Dos outros.

Aqui, ó cavaleiros de um futuro vermelho
Ou branco,
Talhado a goles de café,
Aqui, implacáveis e lúcidos, aguardais
A tal carta de apresentação.

Mas, ai!, como tarda,
Como tarda a carta de apresentação...

in... Obra poética - TOMAZ KIM - INCM

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terça-feira, 4 de maio de 2010

5 - JORGE VICENTE



que aguarde, a flor silenciosa
o seu lento murmúrio de
folhas,

a voz transparente,
acalentada pelo desejo
de seguir a rota do
verso

a flor de esteva amanhece
e rompe os passos do
anjo em ascensão

in... Hierofania dos Dedos - JORGE VICENTE - Temas Originais

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segunda-feira, 3 de maio de 2010

40 - JAIME ROCHA


O homem vê uma mancha ao fundo a
mexer-se na sua direcção. É a barca de
Caronte que regressa. A terra engrossa
quando a água é empurrada e o homem
devorado pelo lixo. Os seus pulmões
enchem-se de vazio e morrem, como dois
milhafres deitados num campo de sal. A sua
dor tornou-se mais forte do que as raízes que
rompem o alcatrão. Uma coisa não pássaro
o que ele vê, um idro a nascer dos sucalcos,
um crepúsculo.

in... Necrophilia - JAIME ROCHA - Relógio D'Água

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domingo, 2 de maio de 2010

Soneto da espera - ALEXANDRE O'NEILL


Que bem conheço a espera e o seu laço!
Ao princípio é cadeira de balanço,
uísque, livro, fumo azul no ar.
É a espera projecto de esperar.

Um denterrato rói esse tabique
e sobre o tempo-antes uma fresta
se abre-fecha para maior abrir-se,
O tempo-agora já se desespessa

e o tempo-antes cresce. Qual balanço,
uísque, livro, fumo azul - a espera!
Adulterado tempo-agora, avanço
da paixão em demência que acelera

por ilusório tempo: o de abolir,
contigo hoje, o antes e o porvir.

in... Poesias completas - ALEXANDRE O'NEILL - Assirio & Alvim

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sábado, 1 de maio de 2010

Soneto do trabalho - JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS


Das prensas  dos martelos  das bigornas
das foices  dos arados  das charruas
das alfaias  dos cascos  e das dornas
é que nasce a canção que anda nas ruas.

Um povo não é livre em águas mornas
não se abre a liberdade com gazuas
à força do teu braço é que transformas
as fábricas e as terras que são tuas.

Abre os olhos e vê. Sê vigilante
a reacção não passará diante
do teu punho fechado contra o medo.

Levanta-te meu Povo. Não é tarde.
Agora é que o mar canta  é que o sol arde
pois quando o povo acorda é sempre cedo.

in... Obra poética - JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS - Edições Avante