quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Vírus na poesia - VALÉRIA VICTORINO VALLE

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O Caos se impõe, o Nada aparece,
a advertência chega inesperadamente, espreita os homens e a vida.
Provoca a Redenção das durezas, seca o escarro da sociedade
e não é o místico nem a ira dos Titãs, não é a fúria de Deus
e nem o apocalipse.

É uma adversidade global que se espalha
vertiginosamente em forma de zumbi imperceptível,
Coisa incontida e desconhecida que ameaça corrosivamente
ruas e muros,
romper grades da saúde de dia ou à noite, de preferência
no crepúsculo dos homens.

Desce sobre a humanidade uma terceira guerra silenciosa,
O Sombrio invisível, o Cárcere da modernidade, que
apresenta o novo e temido fardo social: Quarentena.
Corrompe as horas, lacra os dias, isola a vida, recolhe a noite.
Uma Coisa Desconhecida, rival e viva,
que desnuda a vulnerabilidade e a impotência humana.

Esse Nada que acua o mundo está em qualquer canto,
aloja, acomoda, domina, persiste em todos, mas
gosta mesmo é do mundo dos velhos e enfermos.
Detona a saúde e a vida dos ossos aerados,
das peles flácidas e das rugas profundas e experientes,
das mãos enrugadas, irremediavelmente velhas...
Gosta mesmo dos movimentos e memórias lentas dos idosos,
considerados por alguns como sujeitos
inúteis, retrógados, ultrapassados, e dispensáveis.
Pés na cova... Alguém que já viveu demais! Dizem...
Uma dor forte que traz no encosto: o isolamento,
a epidemia excludente e discriminatória,
a Morte social, simbólica e física do mais frágil.

Talvez, um longe talvez, esse novo tempo que se inaugura,
com esse coronacâncer de difícil cura,
redimensione nossa aterrorizante realidade de desencanto:
Já não basta os vividos e enrugados, há de ser também
o silêncio dos excluídos, o cerceamento dos frágeis,
o anel periférico dos miseráveis que quase nunca protestam
e afrontam os vencedores que humilham e confrontam
os ditadores das dores e da indecente injustiça.

O tal Nada não limpa os pés do cheiro da Morte,
não lava a mão como Pilatos, na isenção das desgraças,
só oferece a coroa de espinhos para esfregar os olhos,
para limpar a boca e secar a coriza,
Promove a febre que não se cura com remédios,
visita leitos, hospitais, covas e valas, e, lá,
não acende velas, nem tutelas não pagas ou desnecessárias,
só evoca martírios, satiriza a ciência e deleta orações.

O nada está tatuado no medo, na reclamação e na exclusão.
Um diabetes que se alimenta do amargo açúcar da indiferença,
Uma pneumonia que expira injustiça e desconsolo,
Uma hipertensão que explode a empatia,
Um descompasso que infarta a alteridade,
Uma fadiga que imobiliza o Bem comum,
Um esgotamento do sobreviver do próximo,
Uma dispneia que asfixia o Viver de cada um,
Um coroar de óbitos nas criaturas.
E entre a ruptura, a tortura e a loucura,
vamos vivendo uma poesia pérfida e exultante,
Convertida, ressignificada e coroada, nesses nossos poemas
de cada dia.

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (POESIA) - COLECTÃNEA - IN-FINITA

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