terça-feira, 16 de março de 2010

Poeta castrado, não! - JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS



Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
cabeçudo  drumedário
fogueira de exibição
teorema  corolário
poema de mão em mão
lãnzudo   publicitário
malabarista   cabrão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado   não!

Os que entendem como eu
as linhas com que me escrevo
reconhecem o que é meu
em tudo quanto lhes devo:
ternura   como já disse
sempre que faço um poema;
saudade que   se partisse
me alagaria de pena;
e também de alegria
uma coragem serena
em renegar a poesia
quando ela nos envenena.

Os que entendem como eu
a força que tem um verso
reconhecem o que é seu
quando lhes mostro o reverso:

Da fome já não se fala
- é tão vulgar que nos cansa -
mas que dizer de uma bala
num esqueleto de criança?

Do frio não reza a história
- a morte é branda e letal -
mas que dizer da memória
de uma bomba de napalm?

E o resto que pode ser
o poema dia a dia?
- Um bisturi a crescer
nas coxas de uma judia;
um filho que vai nascer
parido por asfixia?!
- Ah não me venham dizer
que é fonética a poesia!

Serei tudo o que disserem
por temor ou negação:
Demagogo   mau profeta
falso médico   ladrão
prostituta   proxeneta
espoleta   televisão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado   não!

in... Obra poética - JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS - Edições Avante

2 comentários:

  1. Lindissimo!
    Intenso!
    Parabéns Manu pela escolha!

    Mas quantas vezes castram a sangue frio os sonhos, com o bisturi de palavras afiadas...

    Bjs dos Alpes...

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  2. Nas asas do vento, trouxe-te um poema:

    "As palavras
    São como um cristal,
    as palavras.
    Algumas, um punhal,
    um incêndio.
    Outras,
    orvalho apenas...."
    Eugénio de Andrade

    Adorei visitar-te meu amigo e recebo mais esta bela sugestão... um livro a reter e a ler pelo autor em causa.
    Um abraço
    Luis

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